sábado, 30 de abril de 2011

A recuperação do homem natural em Feuerbach ou para crítica da filosofia especulativa

Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva

1. Introdução

Ludwig Andreas Feuerbach, apesar de pouco pesquisado na academia, foi um pensador contundente para sua época, primeiro pela coragem de dialogar com a tradição, assumindo, assim, um pressuposto filosófico fundamental qual seja: o enfrentamento dos sistemas por dentro, isto é, buscando a crítica a partir de um diálogo direto com os autores por ele elencados, segundo pela inovação ao contrapor a perspectiva filosófica dominante na época que era o idealismo Alemão, que encontrava em Fichte, Schelling e Hegel seus maiores representantes.
Feuerbach tem como seu objeto fundamental, a nosso ver, a recuperação do homem natural, sensível, historicamente determinada, isto é, o homem perdido pela tradição ocidental que o esvaziou em conceito, no caso da filosofia, ou o transformou em consciência frustrada, na medida em que ansiava por outra dimensão, e considerava tudo que era humano como degenerativo do espírito, que um dia iria alcançar a Jerusalém celeste, como no caso do cristianismo. Assim, temos em Feuerbach dois caminhos utilizados para realizar tal empreitada, embora acabem por ser um, ou seja, a crítica à religião e a crítica à filosofia especulativa, que se expressa, segundo o pensador, como religião ou teologia do conceito, e, nessa perspectiva, segundo o filósofo de Landshut, Hegel é a maior expressão.
Feuerbach encontrou no Hegelianismo uma filosofia que o permite pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou como ele expressará o gênero. O que levará a se distanciar do sistema hegeliano é a ambiguidade como este apresenta a religião. O velho Hegel e ainda mais os hegelianos de primeira hora tendem a deixar a religião e a filosofia lado a lado, em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde cedo de pensar o gênero ou essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num ser transcendente, um desconhecido da verdadeira natureza humana de sua relação com o divino que a caracteriza.
Temos, assim, a pretensão de trazer à baila a crítica de Feuerbach a toda forma de filosofia especulativa ou saber que desconsidere a empírica vida dos homens. Portanto, nosso trabalho quer ser uma provocação elucidativa do pensamento do referido autor, não tendo a pretensão de esgotar ou encerrar quaisquer questões sobre o mesmo. Faremos uso de textos centrais do pensador, sobretudo, Necessidade de uma Reforma da filosofia (1842) Princípios da filosofia do futuro (1842), e Teses provisórias para a reforma da filosofia (1843) .

2. Crítica à filosofia Hegeliana ou para construção de uma nova filosofia

Feuerbach parte do pressuposto de que a filosofia de Hegel, apesar de todos os méritos, padece de realidade empírica na medida em que esvazia o mundo dos homens de suas determinações, ficando o mesmo apenas com a idealidade, e tomando esta por realidade. Acaba Hegel por ser a culminância de toda uma maneira de se fazer filosofia que não considerou de forma aguda a existência dos homens, por valorizarem o supra-sensível em detrimento do sensível.
A pretensão de Feuerbach, ao romper com Hegel, é reformar a filosofia, é tirar esta do céu das idéias e a colocar no mundo dos homens. De modo que se faz necessário afastar-se da especulação estéreo da filosofia idealista que não passa de racionalização da teologia. O convite aqui posto por Feuerbach recai sobre uma filosofia que considere o humano enquanto humano, uma filosofia com força positiva, por ser negativa. Uma filosofia que não teme a ruptura para encontrar-se com a realidade. Portanto, uma filosofia que vá além do hegelianismo e do cristianismo salvacionista, consoante Feuerbach

“A filosofia Hegeliana foi à síntese arbitrária de diversos sistemas, de insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta. Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo que tem a força de criar a novidade (...). O cristianismo já não corresponde nem ao homem teórico, nem ao homem prático; já não satisfaz o espírito, nem sequer também satisfaz o coração, porque temos outros interesses para o nosso coração diversos da beatitude celeste e eterna” (FEUERBACH, 1988 p. 14 )

Assim, observamos que as críticas à postura de Hegel, realizadas por Feuerbach, representam uma tomada de consciência da realidade sensível. Tal fato é visível no pensador materialista desde seus trabalhos iniciais quando o mesmo afirma que a filosofia de Hegel não passa de um logocentrismo, constatação essa feita na obra “Para a crítica da filosofia Hegelina” (1839), ou seja, a filosofia de Hegel estabelece uma centralidade absurda no conceito, na postura idealista, nas realidades extra-mundo, no racionalismo anti-histórico. Para Feuerbach, a filosofia não pode começar pressupondo a si mesma, mas, ao contrário, iniciar com o não-filosófico; assim, o pensamento deve entrar em diálogo com o que é da ordem do empírico. Dessa forma, Feuerbach propõe, contra as mediações infinitas do sistema hegeliano, uma retomada da imediatidade tanto do pensamento quanto da intuição sensível, levando ambas a um diálogo.
Feuerbach, nas teses provisórias para uma reforma da filosofia (1842), rompe definitivamente com a especulação hegeliana e com seu próprio ideal teórico-prático da filosofia, e o faz reconhecendo positivamente na religião sua capacidade de satisfazer as necessidades do coração e do sujeito sensível, sua afirmação da sensibilidade e da certeza imediata. A nova filosofia deveria resgatar precisamente este momento da religião, possibilitando a conciliação entre filosofia e vida, essência e individualidade, teoria e prática.

“A essência da teologia é a essência do homem, transcendente, projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do homem” (FEUERBACH, 1988 p.21)

Dividir o homem, cindi-lo em seu existir foi a tarefa da tradição filosófica, que negou a sensibilidade. Esta filosofia, chamada de idealismo, em sua busca de uma essência infinita, esqueceu-se do homem, este foi por um processo de exteriorização de sua essência, isto é, daquilo que o faz humano, negligenciado. Urge, pois, um novo entendimento, e este só pode ser o de resgatar o homem natural e sensível, daí a nova filosofia ter quer iniciar com o finito, enxergando nesse o próprio infinito e ascendendo do concreto para o abstrato.
Aqui, o salto a ser dado reside no resgate dos elementos positivos da religião, quais sejam: sua afirmação das necessidades do coração e da certeza sensível. A nova filosofia brotará do próprio homem que pensa a si mesmo, descobrindo-se em sua essência como a infinita perfectibilidade, e não como algo pré-formado e dado de uma vez por todas.

“A nova filosofia, a única filosofia positiva, é a negação de toda a filosofia de escola, embora dela contenha em si a verdade, é a negação da filosofia como qualidade abstrata, particular, isto é, escolástica: não possui nenhum santo-e-senha, nenhuma linguagem particular, nenhum nome particular, nenhum princípio particular, ela é o próprio homem pensante – o homem que é e sabe que é a essência autoconsciente da natureza, a essência da história, a essência dos Estados, a essência da religião – o homem que é e sabe que é identidade real (não imaginária), absoluta, de todos os princípios e contradições, de todas as qualidades activas e passivas, espirituais e sensíveis, políticas e sociais – que sabe que o ser panteísta, que os filósofos especulativos ou, antes, os teólogos separavam do homem, e objetivavam num ser abstracto, nada mais é do que a sua própria essência indeterminada, mas capaz de infinitas determinações” (FEUERBACH. 1988 p, 32-33)

Para Feuerbach, a verdadeira filosofia deve considerar a natureza em sua realidade mesma e não duplicá-la, ou ainda esvaziá-la de suas determinações. Não cabe, pois, à filosofia negar o que é, ao contrário, é tarefa sua por em evidência a essência mesma da coisa, e a essência da natureza é o homem sensível, histórico e não uma formulação abstrata. Segundo o pensador em questão, “A filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e os seres como são – eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia” (FEUERBACH, 1988, p. 26). Assim, temos a filosofia especulativa e, de modo especial, Hegel realizou um caminho inverso da verdadeira filosofia. A filosofia especulativa tem como objeto o absoluto. Contudo, o absoluto do idealismo é ilusão, é pura forma, carece de conteúdo de necessidade. O absoluto do idealismo é ser sem limites, sem carência. A nova filosofia não tem como conceber tal ser, sob pena de não realizar sem intento de superar tal estrutura. Uma filosofia que considere o existir sensível não pode, por exemplo, negar dimensões fundamentais desse existir, como o espaço e o tempo, tais estruturas “são formas de revelação do infinito real.” (FEUERBACH, 1998, p.27). Reconhecer a vida e a natureza presente nela é reconhecer a necessidade, a contingência, a dor, o sofrimento. O resgate do homem natural passa por assimilar suas características fundamentais, negadas ao longo do tempo pela filosofia especulativa. De acordo com Feuerbach:

“Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma aflição, também aí não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum espírito, nenhuma chama, nenhum amor. Só o ser indigente é o ser necessário. A existência sem necessidade é uma existência supérflua. O que é em geral isento de necessidade também não tem qualquer necessidade da existência. Quer ele seja ou não é tudo um – um para si, um para os outros. Um ser sem indigência é um ser sem fundamento. Só merece existir o que pode sofrer. Só o ser doloroso é um ser divino. Um ser sem afecção é um ser sem ser. Mas um ser afecção nada mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria.” (FEUERBACH, 1988, p. 27)

A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa incide na dificuldade desta de reconhecer a vida e seus componentes como objeto. O mundo dos homens não tem valor investigativo para a filosofia especulativa, a constatação mais eminente disso talvez seja a argumentação da ciência da lógica hegeliana ao tratar o “Nada” enquanto fundamento na medida em que concebe o absoluto como puro ser. Assim, “Hegel começa, como mencionado, com o puro ser ou, melhor expresso, com o conceito do ser ou com o ser abstrato, vazio mesmo, pelo qual ele quer assentar o primeiro princípio da filosofia, o primeiro cientificamente. Em oposição a Hegel, Feuerbach pergunta em seu escrito Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (Para a Crítica da Filosofia Hegeliana) (1839): deve o princípio do filosofar, como Hegel o concebe ser o conceito abstrato do ser? “Por que eu não devo começar com ser mesmo, isto é, com o ser real? Ou por que não com a razão, já que o ser, na medida em que ele foi pensado, tal como ele é objeto na ‘Logik’, me remete imediatamente à razão?’’ (FEUERBACH, 1970, p. 23-24) Ou melhor: se Hegel começa com o espírito absoluto (com a razão, o saber absoluto),ele não inicia já com um pressuposto?”. Feuerbach provoca um retomada do ser ao questionar Hegel na sua opção de partir do indeterminado, do não-ser. Novamente a crítica a Hegel remete a uma nova abordagem do filosofar. De tal forma, que uma filosofia que não tenha como objeto o homem em suas determinações, não pode ser contudente. Assim, “O filosófo deve introduzir no texto da filosofia aquilo que no homem não filosofa, o que, pelo contrário, é contra a filosofia, que se opõe ao pensamento abstracto, portanto, o que em Hegel se reduz a simples nota.” (FEUERBACH, 1988, p.28).
A ruptura de Feuerbach com a filosofia de Hegel vai ganhando corpo a ponto de o pensador materialista propor um abandono da filosofia hegeliana, sob pena de não romper com a égide da teologia, o que implica que para Feuerbach o idealismo especulativo de Hegel equivale à teologia ou, entre palavras, a filosofia hegeliana não passa do recôndito dos racionalistas, sua última morada, com isso, parece-nos que Feuerbach elabora duas críticas: a primeira seria positiva, um elogio a Hegel, ao reconhecer em seu pensamento a forma mais acabada desse paradigma de filosofia, a segunda seria negativa, na medida em que já não é mais possível se filosofar a partir de um ser que é um não ser, ou seja, um vazio de determinações. Consoante o filosofo de Landshut:
“Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana de que a natureza é a realidade posta pela idéia é apenas a expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é, um ser abstracto (...) A filosofia Hegeliana é o último lugar de refúgio, o último suporte racional da teologia. (FEUERBACH, 1988, p.31) ...

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sábado, 23 de abril de 2011

O que significa Cidadania?

Por Ricardo George

Estamos vivendo em sociedade que avança consideravelmente no campo tecnológico e econômico. Contudo, sempre fica a pergunta se avanços dessa natureza implicam na inclusão das pessoas e, até onde, isto pode implicar na construção da cidadania. Muitas vezes observarmos o “bolo crescer”, mas suas fatias ficam nas mãos de poucos. Diante dessas provocações queremos esclarecer minimamente o conceito de cidadania, ao passar pela história deste conceito, considerando que o mesmo é uma construção social, ou seja, algo realizado pelos seres humanos agindo em conjunto.
Assim, temos que a cidadania é um processo em constante construção, que teve origem, historicamente, com o surgimento dos direitos civis, no decorrer do século XVIII – chamado Século das Luzes –, sob a forma de direitos de liberdade, mais precisamente, a liberdade de ir e vir, de pensamento, de religião, de reunião, pessoal e econômica, rompendo-se com o feudalismo medieval na busca da participação na sociedade. A concepção moderna de cidadania surge, então, quando ocorre a ruptura com o Ancien Régime, em virtude de ser ela incompatível com os privilégios mantidos pelas classes dominantes, passando o ser humano a deter o status de "cidadão".
O conceito de cidadania, entretanto, tem sido freqüentemente apresentado de uma forma vaga e imprecisa. Uns identificam-na com a perda ou aquisição da nacionalidade; outros, com os direitos políticos de votar e ser votado. No Direito Constitucional, aparece o conceito, comumente, relacionado à nacionalidade e aos direitos políticos. Já na Teoria Geral do Estado, aparece ligado ao elemento povo como integrante do conceito de Estado. Dessa forma, é fácil perceber que no discurso jurídico dominante, a cidadania não apresenta um estatuto próprio, pois na medida em que se relaciona a estes três elementos (nacionalidade, direitos políticos e povo), apresenta-se como algo ainda indefinido.
A famosa Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, sob a influência do discurso burguês, cindiu os direitos do "Homem" e do "Cidadão", passando a expressão, Direitos do Homem, significar o conjunto dos direitos individuais, levando-se em conta a sua visão extremamente individualista, cuja finalidade da sociedade era a de servir aos indivíduos, ao passo que a expressão, Direitos do Cidadão, significaria o conjunto dos direitos políticos de votar e ser votado, como institutos essenciais à democracia representativa.
Com o triunfo do liberalismo, sufocou-se, então, a idéia de democracia, que só ocorre quando todas as camadas da sociedade têm as mesmas oportunidades de participação no processo econômico, fato pouco observado nos dias atuais. O que observamos é que a cidadania anda maculada, pois milhões de pessoas ainda se encontram abaixo da linha da pobreza. É impossível sustentar que alguém seja cidadão porque vota. Somos cidadãos porque gozamos de direitos em sua expressão formal e substancial. Se esses direitos não se materializam em educação de qualidade; saúde pública relevante; acesso a cultura e a justiça; moradias dignas entre outros, o conceito de cidadania emerge apenas como um belo adereço conceitual. Lutemos, pois, de forma consciente, para uma cidadania que expresse a garantia dos direitos.

terça-feira, 22 de março de 2011

O Valor da Filosofia

Bertrand Russell

Tendo agora chegado ao término de nossa breve e incompletíssima revisão dos problemas da filosofia, será conveniente considerar, para concluir, qual é o valor da filosofia e por que ela deve ser estudada. É da maior importância considerar esta questão, em vista do fato de que muitos homens, sob a influência da ciência e dos negócios práticos, propendem a duvidar se a filosofia é algo melhor que inocente mas inútil passatempo, com distinções sutis e controvérsias sobre questões em que o conhecimento é impossível.

Esta visão da filosofia parece resultar, em parte, de uma concepção errada dos fins da vida humana e em parte de uma concepção errada sobre o tipo de bens que a filosofia empenha-se em buscar. As ciências físicas, por meio de invenções, é útil para inumeráveis pessoas que a ignoram completamente; e por isso o estudo das ciências físicas é recomendável não somente, ou principalmente, por causa dos efeitos sobre os estudantes, mas antes por causa dos efeitos sobre a humanidade em geral. É esta utilidade que faz parte da filosofia. Se o estudo de filosofia tem algum valor para outras pessoas além de para os estudantes de filosofia, deve ser somente indiretamente, através de seus efeitos sobre as vidas daqueles que a estudam. Portanto, é em seus efeitos, se é que ela tem algum, que se deve procurar o valor da filosofia.

Mas, além disso, se não quisermos fracassar em nosso esforço para determinar o valor da filosofia, devemos em primeiro lugar libertar nossas mentes dos preconceitos dos que são incorretamente chamados homens práticos. O homem prático, como esta palavra é freqüentemente usada, é alguém que reconhece apenas necessidades materiais, que acha que o homem deve ter alimento para o corpo, mas se esquece que é necessário prover alimento para o espírito. Se todos os homens estivessem bem; se a pobreza e as enfermidades tivessem já sido reduzidas o mais possível, ainda ficaria muito por fazer para produzir uma sociedade verdadeiramente válida; e até no mundo existente os bens do espírito são pelo menos tão importantes quanto os bens materiais. É exclusivamente entre os bens do espírito que o valor da filosofia deve ser procurado; e somente aqueles que não são indiferentes a esses bens podem persuadir-se de que o estudo da filosofia não é perda de tempo.

A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos preconceitos, e de nossas crenças. Mas não se pode dizer, no entanto, que a filosofia tenha tido algum grande êxito na sua tentativa de fornecer respostas definitivas a seus problemas. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogia, a um historiador, ou a qualquer outro cientista, que definido corpo de verdades foi estabelecido pela sua ciência, sua resposta durará tanto tempo quanto estivermos dispostos a lhe dar ouvidos. Mas se fizermos essa mesma pergunta a um filósofo, ele terá que confessar, se for sincero, que a filosofia não tem alcançado resultados positivos tais como tem sido alcançados por outras ciências. É verdade que isso se explica, em parte, pelo fato de que, mal se torna possível um conhecimento preciso naquilo que diz respeito a determinado assunto, este assunto deixa de ser chamado de filosofia, e torna-se uma ciência especial. Todo o estudo dos corpos celestes, que hoje pertence à Astronomia, se incluía outrora na filosofia; a grande obra de Newton tem por título: Princípios matemáticos da filosofia natural. De maneira semelhante, o estudo da mente humana, que era uma parte da filosofia, está hoje separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Assim, em grande medida, a incerteza da filosofia é mais aparente do que real: aquelas questões para as quais já se tem respostas positivas vão sendo colocadas nas ciências, ao passo que aquelas para as quais não foi encontrada até o presente nenhuma resposta exata, continuam a constituir esse resíduo a que é chamado de filosofia.

Isto é, no entanto, só uma parte do que é verdade quanto à incerteza da filosofia. Existem muitas questões ainda - e entre elas aquelas que são do mais profundo interesse para a nossa vida espiritual - que, na medida em que podemos ver, deverão permanecer insolúveis para o intelecto humano, a menos que seus poderes se tornem de uma ordem inteiramente diferente daquela que são atualmente. O universo tem alguma unidade de plano e objetivo, ou ele é um concurso fortuito de átomos? É a consciência uma parte permanente do universo, dando-nos esperança de um aumento indefinido da sabedoria, ou ela não passa de transitório acidente sobre um pequeno planeta, onde a vida acabará por se tornar impossível? São o bem e o mal importantes para o universo ou somente para o homem? Tais questões são colocadas pela filosofia, e respondidas de diversas maneiras por vários filósofos. Mas, parece que se as respostas são de algum modo descobertas ou não, nenhuma das respostas sugeridas pela filosofia pode ser demonstrada como verdadeira. E, no entanto, por fraca que seja a esperança de vir a descobrir uma resposta, é parte do papel da filosofia continuar a examinar tais questões, tornar-nos conscientes da sua importância, examinar todas as suas abordagens, mantendo vivo o interesse especulativo pelo universo, que correríamos o risco de deixar morrer se nos confinássemos aos conhecimentos definitivamente determináveis.

Muitos filósofos, é verdade, sustentaram que a filosofia poderia estabelecer a verdade de certas respostas a tais questões fundamentais. Eles supuseram que o que é mais importante no campo das crenças religiosas pode ser provado como verdadeiro por meio de estritas demonstrações. A fim de julgar tais tentativas, é necessário fazer uma investigação sobre o conhecimento humano, e formar uma opinião quanto a seus métodos e suas limitações. Sobre tais assuntos é insensato nos pronunciarmos dogmaticamente. Porém, se as investigações de nossos capítulos anteriores não nos induziram ao erro, seremos forçados a renunciar à esperança de descobrir provas filosóficas para as crenças religiosas. Portanto, não podemos incluir como parte do valor da filosofia qualquer série de respostas definidas a tais questões. Mais uma vez, portanto, o valor da filosofia não depende de um suposto corpo de conhecimento definitivamente assegurável, que possa ser adquirido por aqueles que a estudam.

O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época e do seus país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica nosso sentimento de admiração, ao mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar.

Além de sua utilidade ao mostrar insuspeitadas possibilidades, a filosofia tem um valor - talvez seu principal valor - por causa da grandeza dos objetos que ela contempla, e da liberdade proveniente da visão rigorosa e pessoal resultante de sua contemplação. A vida do homem reduzido ao instinto encerra-se no círculo de seus interesses particulares; a família e os amigos podem ser incluídos, mas o resto do mundo para ele não conta, exceto na medida em que ele pode ajudar ou impedir o que surge dentro do círculo dos desejos instintivos. Em tal vida existe alguma coisa que é febril e limitada, em comparação com a qual a vida filosófica é serena e livre. Situado em meio de um mundo poderoso e vasto que mais cedo ou mais tarde deverá deitar nosso mundo privado em ruínas, o mundo privado dos interesses instintivos é muito pequeno. A não ser que ampliemos o nosso interesse de maneira a incluir todo o mundo externo, ficaremos como uma guarnição numa praça sitiada, sabendo que o inimigo não a deixará fugir e que a capitulação final é inevitável. Não há paz em tal vida, mas uma luta contínua entre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De uma maneira ou de outra, se pretendemos uma vida grande e livre, devemos escapar desta prisão e desta luta.

Uma válvula de escape é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica não divide, em suas investigações mais amplas, o universo em dois campos hostis: amigos e inimigos, aliados e adversários, bons e maus; ela encara o todo imparcialmente. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o restante do universo é semelhante ao homem. Toda aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu, mas este alargamento é melhor alcançado quando não é procurado diretamente. Este alargamento é obtido quando o desejo de conhecimento é somente operativo, por um estudo que não deseja previamente que seus objetos tenham este ou aquele caráter, mas adapte o Eu aos caracteres que ele encontra em seus objetos. Esse alargamento do Eu não é obtido quando, tomando o Eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu que seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece estranho. O desejo para provar isto é uma forma de egotismo, é um obstáculo para o crescimento do Eu que ele deseja, e do qual o Eu sabe que é capaz. O egotismo, na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para seus próprios fins; assim, ele faz do mundo menos caso do que faz do Eu, e o Eu coloca limites para a grandeza de seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos do não-Eu, e por meio de sua grandeza os limites do Eu são ampliados; através da infinidade do universo, a mente que o contempla participa um pouco da infinidade.

Por esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do Eu com o não-Eu. Como toda união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo em conformidade com o que descobrimos em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação a visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é construção humana; que espaço e tempo, e o mundo dos universais, são propriedades da mente, e que, se existe alguma coisa que não seja criada pela mente, é algo incognoscível e de nenhuma importância para nós. Esta visão, se nossas discussões precedentes forem corretas, não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo aquilo que lhe dá valor, visto que ela aprisiona a contemplação do Eu. O que tal visão chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas uma série de preconceitos, hábitos e desejos, que compõem um impenetrável véu entre nós e o mundo para além de nós. O homem que se compraz em tal teoria do conhecimento humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por receio de que fora dele sua palavra não seja lei.

A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra sua satisfação no próprio alargamento do não-Eu, em toda coisa que engrandece os objetos contemplados, e desse modo o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo aquilo que é pessoal e privado, tudo o que depende do hábito, do auto-interesse ou desejo, deforma o objeto, e, portanto, prejudica a união que a inteligência busca. Levantando uma barreira entre o sujeito e o objeto, as coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O livre intelecto enxergará assim como Deus poderia ver: sem um aqui e agora; sem esperança e sem medo; isento das crenças habituais e preconceitos tradicionais: calmamente, desapaixonadamente, com o único e exclusivo desejo de conhecimento - conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo quanto é possível a um homem alcançar. Por isso, o espírito livre valorizará mais o conhecimento abstrato e universal em que não entram os acidentes da história particular, que ao conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente - como tal conhecimento deve ser - de um ponto de vista pessoal e exclusivo, e de um corpo cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quanto revelam.

A mente que se tornou acostumada com a liberdade e imparcialidade da contemplação filosófica preservará alguma coisa da mesma liberdade e imparcialidade no mundo da ação e emoção. Ela encarará seus objetivos e desejos como partes do Todo, com a ausência da insistência que resulta de considerá-los como fragmentos infinitesimais num mundo em que todo o resto não é afetado por qualquer uma das ações dos homens. A imparcialidade que, na contemplação, é o desejo extremo pela verdade, é aquela mesma qualidade espiritual que na ação é a justiça, e na emoção é o amor universal que pode ser dado a todos e não só aos que são considerados úteis ou admiráveis. Assim, a contemplação amplia não somente os objetos de nossos pensamentos, mas também os objetos de nossas ações e nossos sentimentos: ela nos torna cidadãos do universo, não somente de uma cidade entre muros em estado de guerra com tudo o mais. Nesta qualidade de cidadão do mundo consiste a verdadeira liberdade humana, que nos tira da prisão das mesquinhas esperanças e medos.


Enfim, para resumir a discussão do valor da filosofia, ela deve ser estudada, não em virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam nossa concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo porque através da grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também se torna grande, e se torna capaz daquela união com o universo que constitui seu bem supremo.

Bertrand Russell - 1912, Oxford University Press, 1959, reimpresso em 1971-2 - Tradução: Jaimir Conte

Os indiferentes

O texto abaixo é de Antonio Gramsci (1891-1937) socialista italiano que foi preso pela polícia fascista de Mussolini. Morreu na prisão, mas nos deixou uma obra política fundamental: Os "Cadernos do Cárcere". O texto em questão, no entanto, foi escrito ainda em sua juventude para a revista "Cittá Futura" (“Cidade Futura”) – redigido em fevereiro de 1917. A fonte desta postagem que faço uso aqui e recomendo a leitura, para maiores informações, é: http://www.espacoacademico.com.br/064/64tc_gramsci.htm

Boa leitura!

Os indiferentes
por Antonio Gramsci




Odeio os indiferentes.Acredito que viver, tal qual Friederich Hebbe[2], quer dizer ser partigiani.[3] [N.doT.: militante, companheiro e/ou "partidário"] Não podem existir os apenas homens, os estranhos à cidade. Quem vive verdadeiramente não pode não-ser concidadão, e não parteggiare. [N.doT.: militar, compartilhar e/ou "tomar partido"] Indiferença é abulia, parasitismo, velhacaria; não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a cadeia de chumbo ("palla di piombo") para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam amiúde os mais esplendorosos entusiasmos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor que o peito dos seus guerreiros; porque engole em seus pântanos lamacentos os seus assaltantes, os dizima e desencoraja e, às vezes, faz com que desistam da ação heróica.

A indiferença opera poderosamente na história. Opera passivamente, mas opera. É a fatalidade; é aquilo com o que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que derruba os planos mais bem construídos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência, e a destroça. Aquilo que acontece – o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar – não se deve tanto à iniciativa dos poucos que operam quanto à indiferença, ao absenteísmo de muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto, sobretudo, porque a massa dos homens abdica de sua vontade, deixa fazer, deixa enlaçar os nós que, depois, só a espada pode cortar, deixa promulgar as leis que depois só a revolta faz revogar, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma insurreição pode derrubar. A fatalidade que parece dominar a história não é outra coisa que a aparência ilusória desta indiferença, deste absenteísmo; fatos amadurecidos à sombra – a poucas mãos – não-submetidos a qualquer controle, que tecem a tela da vida coletiva, e a massa dos homens ignora, porque isso não a preocupa. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões estreitas, de alcance imediato, de ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos; e a massa dos homens ignora, porque isso não a preocupa. Mas os fatos que amadurecem vêm à superfície; a tela tecida à sombra vem à tona, e então parece ser a fatalidade a arrastar a tudo e a todos, parece que a história não é mais do que um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, do qual todos são vítimas – o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem esteve ativo e o indiferente. Este último se irrita, desejaria livrar-se às conseqüências, desejaria deixar claro que não assentiu, que não é responsável. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum – ou poucos – se pergunta: se tivesse eu também cumprido o meu dever, se tivesse buscado fazer valer a minha vontade, meu juízo, teria acontecido o que aconteceu? Mas nenhum – ou poucos – o atribui à sua indiferença, ao seu ceticismo; a não ter dado seus braços e atividade àqueles grupos de concidadãos que, para evitar esse mesmo mal, combatiam; que a procurar tal bem se propunham.

A maioria deles, ao contrário, diante de acontecimentos consumados, prefere falar de falhas ideais, de programas definitivamente esmagados e de outras fanfarronices semelhantes. Recomeçam assim o seu absenteísmo de qualquer compromisso. E já não por não verem claramente as coisas e, por vezes, não serem capazes de divisar belíssimas soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que – embora requerendo uma ampla preparação e tempo – são todavia tão urgentes quanto. Mas essas soluções são belissimamente inférteis; mas essa contribuição à vida coletiva não é animada por qualquer luz moral: é produto de curiosidade intelectual, e não do senso pungente de um compromisso histórico que quer a todos ativos na vida, que não admite desconhecimentos e indiferenças de nenhuma espécie.

Odeio os indiferentes também porque me dá nojo o seu choramingo de eternos inocentes. Peço contas a cada um deles pelo balanço do que a vida lhes pôs e põe, cotidianamente, do que fizeram e, especialmente, do que não fizeram. E sinto poder ser inexorável, não dever desperdiçar a minha compaixão, não repartir com eles as minhas lágrimas. Sou partigiano, vivo, sinto nas viris consciências de meus companheiros já pulsar a atividade da cidade futura que estamos construindo. E, nesta, a cadeia social não pesa sobre poucos; qualquer coisa que acontece não se deve ao acaso, à fatalidade, mas é obra inteligente dos concidadãos. Não há nesta ninguém à janela observando enquanto os poucos se sacrificam, abnegados no sacrifício; e tampouco há quem esteja entocaiado à janela e que pretenda usufruir o pouco bem que a atividade de poucos busca, e afogue a sua desilusão injuriando o sacrificado, o abnegado, porque não teve êxito na sua tentativa.



Vivo, sou partigiano. Por isso odeio quem não parteggia, odeio os indiferentes.



________________
[1] Gramsci, Antonio (1917). Indifferenti, In: Cittá Futura, 11/feb./1917 (In: Scritti Giovanili 1914-1918. Torino: Einaudi, 1972). Tradução livre de Roberto Della Santa Barros. Cotejada com a versão de P. C. U. Cavalcanti (Convite à Leitura de Gramsci. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985) e conferida junto à tradução de C. N. Coutinho (Escritos Políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004).

[2] Friedrich Hebbel – In: Vivere significa esser partigiani – publicado na edição do jornal Grido del Popolo (“Grito do Povo”) de 27 de maio de 1916. Hebbel (1813-1863) – dramaturgo e poeta alemão – registra tal asseveração em seus Diários (reflexão de número 2.127), onde desenvolve reflexão eminentemente filosófica.Gramsci vale-se – no artigo do jornal Cittá Futura – de um enunciado próprio do pensamento social de Hebbel, nutrindo-se do espírito de reflexões como: “Alla gioventù si rimprovera spesso di credere che il mondo cominci appena con essa. Ma la vecchiaia crede anche più spesso che il mondo cessi con lei. Cos’è peggio?” (“À juventude se censura amiúde por acreditar que o mundo começa apenas com a mesma. Mas os velhos acreditam ainda mais piamente que o mundo cessa com eles. O que é pior?”). Outro aforismo da mesma matriz – perfeitamente compreensível para os lusófonos, daqui e de todas as partes – é também bastante significativo de sua índole antideterminista: “Un prigionero è un predicatore de la libertá”.
[3] Nesta tradução livre optamos pelo (algo heterodoxo) procedimento de manter o original dos lexemas (i) partigiani, (ii) parteggiare, (iii) partigiano e (iv) parteggia; apenas cuidando destacá-los em negrito. Expliquemo-nos. As soluções encontradas na tradução de Cavalcanti são, segundo a ordem de exposição: (i) “partidários”, (ii) “[ser] partidário”, (iii) “militante” e (iv) “[toma] partido”. Coutinho, para a última ("parteggia"), utiliza a forma"se compromete". Apesar de não contribuir para qualquer prejuízo do significado geral dos mesmos, incorre-se em dois problemas centrais: arranca-se a raiz comum entre os substantivos partigiano (singular) e partigiani (plural) e o verbo parteggiare / parteggia (nas formas infinitiva e presente, respectivamente) por um lado e, por outro, perde-se a força (algo taumatúrgica) reivindicada pelo autor – em torno a tais unidades de sentido – em oposição à indifferenza e aos indifferenti, ao longo do fundamental de sua argüição histórico-filosófica. Ainda, em perspectiva sincrônico-diacrônica, a palavra ("partigiano") sedimentou-se na posterior história social italiana como símbolo da resistência antifascista – vide, por exemplo, o cancioneiro revolucionário da Itália, em especial Bella Ciao. E não se trata de um passado remoto. A figura do partigiano ("militante, companheiro, partidário") ecoou vívidamente nas avenidas de Florença (capital da Toscana, na Itália) cantado nas vozes dos mais de 1.500.000 manifestantes – de todas as partes do mundo – que acudiram à marcha contra a Guerra do Iraque durante o encerramento do I Fórum Social Europeu, em pleno ano de 2002, no alvorecer do século XXI. Ao apoderar-se de mentes e corações de milhões em movimento e, dessa forma, engrandecer a tarefa a ser realizada pelas novas gerações, o signo em questão revigora-se e se atualiza, convertendo-se em verdadeira força material – base para o aprendizado de seu "novo idioma". Como queria o poeta, tranformar a vida para, então, cantá-la. Por isso tudo: parteggia, partigiano.
"(...) o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela" (In: Marx, Karl. 1852. O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, várias edições).

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Bioética e sua relação com os direitos humanos

 Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva

1. A Questão do Totalitarismo: Negação dos Direitos Humanos

Em Hannah Arendt, a questão totalitária ou, mais precisamente, o horror totalitário, ocorrido nos campos de concentração instigou-a a investigação de tal fato, levando-a a concluir que acontecia, naquele momento histórico, algo desnecessário e desprovido de significado político.

Hannah Arendt identifica, então, o problema central do totalitarismo como a necessidade de afrontar a dignidade humana pelo sistema estratégico da descartabilidade dos homens. Aqui encontramos toda e qualquer forma de direito do homem negada na medida em que o campo de concentração se transforma na “fábrica de morte”, capaz de produzir cadáveres em série e estabelecer-se na atualização do mal radical, entendido por ela como o progressivo assassinato jurídico, moral e físico, realizado contra as pessoas nos governos totalitários. O ato da descartabilidade humana nos coloca na rota dos direitos humanos, na medida em que estes representam os direitos fundamentais do homem que, ao longo da história, foram assumindo a forma de direito positivo como uma tentativa de singularmente garantir a todo e qualquer indivíduo proteção. Assim, segundo Celso Lafer , o “valor” da pessoa humana como “valor fonte” da vida em sociedade encontra sua expressão jurídica nos direitos humanos, de modo que pensar a defesa da vida, não no sentido abstrato, mas localizado, historicamente determinado no horizonte de sentido de uma comunidade torna-se a tarefa fundante dos direitos reivindicados na teoria de Hannah Arendt, o que autoriza legitimar uma discussão pertinente dos direitos do homem e do cidadão a partir de seu arcabouço teórico.

É preciso tornar evidente o conceito de cidadania em Hannah Arendt para não incorrermos no equívoco de entendê-lo como simples defesa ideológica, pois o mesmo deve ser entendido como “o direito a ter direito”. Nessa perspectiva, entramos na esfera do direito não como algo dado ou metafisicamente posto, e sim, como uma construção histórica determinada; em outras palavras, como uma criação da convivência coletiva, que requer uma convivência em um espaço público comum. Assim, a postura ética vislumbrada por Hannah Arendt nada tem a ver com as tentativas do jusnaturalismo centrada na perspectiva abstrata do bem e do dever. Na visão jusnaturalista o homem aparece como uma idéia universal, eterna e imutável que em última instância, não está em lugar nenhum. Em contraponto a essa idéia, Hannah Arendt resgata a categoria da ação, na qual vai pensar a dimensão ética. Nesse contexto, as dimensões da comunidade e da liberdade emergem como fundantes no horizonte do homem como ser de ação, isto é, como agente constituidor do espaço público. Nesse sentido, tomando por base a questão totalitária, cabe agora um maior detalhamento dessa ação principalmente no tocante ao uso da violência que aparece nesse contexto como negadora dos direitos humanos.

2.A Violência Totalitária – O Braço do Terror

A descrição abaixo mostra todo o horror vivido pelos judeus nos campos de concentração, os quais trouxeram à tona toda a capacidade de destruição sistemática do regime totalitário, tanto quanto apresentaram seu principal método de atuação, a violência:

Nas fábricas da morte [...]. Todos eles morreram juntos, os jovens e velhos, os fracos e fortes, os doentes e os saudáveis; não como povo, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, não como bons e maus, belos e feios, mas reduzidos ao denominador comum do mais baixo nível da vida orgânica em si mesma, mergulhados no abismo mais escuro e profundo da igualdade primitiva, como gado, como matéria, como coisa sem corpo nem alma, sem nem mesmo uma fisionomia sobre a qual a morte pudesse imprimir seu selo. É nessa igualdade monstruosa, sem fraternidade ou humanidade [...], que nós vemos, como que refletida, a imagem do inferno. A maldade grotesca daqueles que estabelecem tal igualdade está para além da capacidade de compreensão humana. Mas igualmente grotesca e para além do alcance da justiça humana está a inocência daqueles que morreram nesta ingenuidade. A câmara de gás foi mais do que qualquer um poderia ter merecido, e, frente a ela, o pior criminoso era tão inocente quanto um recém-nascido. (ARENDT, 2005, p. 198).

O extermínio silencioso produzido pelas fábricas da morte reduz o significado da existência humana a um nada, em que ser ou não ser não tem significado. Para a crueldade nazista, a descartabilidade do outro era algo certo e necessário de tal forma que o extermínio em massa não reflete sobre o significado da existência do outro e, atropelando todos os princípios, cria uma fábrica de cadáveres, para pôr em frente seu objetivo de domínio total, este que é concebido como meta fundamental, tão fundamental que a vida humana passa a ser secundária em nome do objetivo a ser alcançado. Nessa perspectiva, a violência totalitária atua resguardada pelo Estado, ou seja, o Estado aparece aí como fachada, que possibilita ao monstro liberar seus tentáculos. Usando sua política secreta e agindo sob suas próprias insígnia e vontade,

[...]este [o líder] decide sobre quais categorias sociais incidirão os conceitos de inimigo objetivo ou de sociedade indesejável, tipologias que designam aqueles cuja existência implica discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser exterminados independentemente do que pensem. (DUARTE, 2000, p.65).

Esse proceder nos leva à compreensão de como o sistema totalitário é capaz de destruir o “humano construído nos indivíduos” , a tal ponto de vítima e carrasco serem atingidos, pois, na medida em que o campo de concentração anula a liberdade de alguns e produz uma matança sistemática de outros, não apenas as vítimas são desumanizadas, mas executores perdem também o sentido da dignidade humana, fato esse que nos revela a forte característica de novidade do totalitarismo, tanto quanto nos esclarece o seu poder de destruição. Nesse sentido, os campos de concentração se apresentam como a principal instituição dos regimes totalitários, não apenas porque eles condensam e potencializam todos os absurdos implementados na textura do social, por essa forma de dominação sem precedentes, mas, também, porque justamente aí se manifesta o objetivo crucial do totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos.

A violência produzida nos campos de concentração ganhou dimensões inimagináveis. É possível afirmar que até os mais competentes roteiristas de filmes de guerra ou literatos do gênero não tenham, até então, colocado em suas obras tamanho requinte de crueldade e horror como fez o totalitarismo nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Essa violência manifesta, sobretudo um novo desafio para a compreensão da política, na medida em que as categorias da modernidade se mostram inadequadas ou insuficientes para dar conta de tamanha ruptura que se apresenta na história da humanidade. O terror entra no cenário político para fincar marcas indeléveis na história dos homens, mas, sobretudo, para provocar um desafio de compreensão, respostas e ressignificação do agir humano, ainda que essa não fosse sua intenção, mas veio à tona em vista de tamanha violência aplicada.

A violência totalitária é apolítica, na medida em que não permite ao outro o direito de manifestar-se. Até as antigas tiranias eram capazes de se encantar com o discurso contrário as suas práticas e até aderir a posições daqueles que em algum momento se apresentaram como inimigo político. No totalitarismo, tal fato é inviável já que o outro não tem direito a compor o tecido social, sendo enviado a confinamentos que destroem sua humanidade ou são diretamente exterminados em câmaras de gás ou com outros recursos, contanto que sejam silenciados. O lugar que ocupa o silêncio no modo de agir do totalitarismo tem significado ímpar, tendo em vista que a capacidade do discurso é sempre uma ameaça. O silêncio ganha importância, o mesmo só deve ser quebrado para exaltar os objetivos do movimento totalitário, o líder e seus símbolos. Portanto, o discurso no totalitarismo tanto é mudo, na medida em que é controlado e direcionado, quanto carente de significado e de poder de denúncia. O único discurso que sobrevive é o do regime totalitário. Fora esse, todos os outros ou se enquadram ou experimentam um último diálogo nos campos de concentração ou câmaras de gás.

Os campos de concentração trouxeram como novidade uma total falta de finalidade, isto é, apresentavam um caráter despropositado em seu agir, tinham que se financiar a si mesmos e eram praticamente destituídos de qualquer produtividade econômica ou de qualquer finalidade política clara e imediata. Por certo, criminosos e opositores ao regime também foram neles encarcerados, mas a verdadeira natureza dos campos não pode ser compreendida recorrendo-se a esse fato, já que eles só se tornaram abundantes, tanto na Alemanha quanto na União soviética, uma vez sufocada toda oposição. Do mesmo modo, os seus internos, em ambos os países, foram várias vezes obrigados a cumprir trabalhos forçados em regime de escravidão, o que ainda poderia ser humanamente compreensível, pois apresentava precedente histórico. Entretanto, a própria falta de planejamento e de organização dessas tarefas forçadas, somada ao fato de que o trabalho jamais constituiu a regra geral no sistema ‘concentracionário’, denuncia a verdadeira destinação dos campos de concentração: a de não servirem para coisa alguma, senão para destruição da liberdade.

A negação e anulação da liberdade humana promovida pelos campos de concentração criaram um clima de destruição do homem, isto é, daquilo que faz o homem ser homem. Artifícios como a liberdade, a pluralidade e a existência de um espaço de convivência política garantem humanidade, enquanto a ausência desses nos leva em direção contrária , mutilando a dignidade humana ou até destruindo-a por inteira.

A violência dos campos de concentração traz no seu interior tamanha força destrutiva, que é capaz de aniquilar o último resíduo humano presente no homem, transformando-o em mero “feixe de reações” que, por sua vez, pode ser aniquilado sem oferecer qualquer resistência. Tudo isso torna claro que a violência encontra morada nos campos de concentração. Sendo ela “senhora-mor” dessa casa de horrores, conduz forçadamente cada um de seus habitantes, que aí se encontram, a uma certeza: sua dignidade como pessoa está marcada para sempre , pelo menos a dos que sobrevivem.

Cabe agora, exposto os malefícios da violência do terror que nega os direitos humanos, discutir como apareceu no contexto contemporâneo à questão específica da bioética, e como ocorreu seu desenvolvimento histórico e sua ligação com as questões de respeito a vida.


3.A Bioética e Sua Implicação Histórico-Filosófica Com os Direitos Humanos

O termo bioética tem formulação estabelecida nos anos 70 do século 20, por ocasião da publicação de um artigo e posteriormente de um livro do prof. Van Rensellaer Potter. Lançava-se aqui a idéia de uma “ponte” entre as ciências da vida e os estudos dos valores. Contudo é preciso considerar uma evolução histórica do conceito de bioética nas duas décadas seguintes a sua formulação inicial. Vejamos: O professor Potter tinha uma grande preocupação com a interação do problema ambiental e das questões de saúde. Suas idéias baseavam-se nas propostas do Prof. Aldo Leopold, especialmente na sua Ética da Terra. Atualmente, esta primeira proposta é classificada por ele próprio como Bioética Ponte, especialmente pela característica interdisciplinar que foi utilizada como base de suas idéias. Esta primeira reflexão incluía um grande questionamento sobre a repercussão da visão de progresso existente na década de 1960. A Partir dos anos 70 o termo bioética ganha um especificidade, tendo em vista os avanços da biomedicina e suas implicações diretas para com os profissionais de saúde, assim, pesquisadores como os professores Warren Reich e LeRoy Walters, ambos vinculados ao Instituto Kennedy de Ética, da Universidade Georgetown/Washington DC, e do professor David Roy, do Canadá, restringiram esta reflexão apenas às questões de assistência e pesquisa em saúde. Em resposta a essa especificidade surgem novas abordagens para a bioética, como a posição do Prof. Warren Reich que reiterou, em 1995, sua perspectiva para o termo, incorporando à sua proposta de Bioética as perspectivas interdisciplinar, pluralista e sistemática. Nessa mesma linha, anos antes, precisamente em 1988, o Prof. Potter reiterou as suas idéias iniciais criando a Bioética Global. O Prof. Potter entendia o termo global como sendo uma proposta abrangente, que englobasse todos os aspectos relativos ao viver, isto é, envolvia a saúde e a questão ecológica. E, por fim, para fechar o leque de amplitude da ação do termo bioética, o Prof. Potter propôs, em 1998, a nova definição de Bioética Profunda, termo que passou a ser cooptado por importantes organizações, como ocorreu em 2001 com o Programa Regional de Bioética, vinculado a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) que definiu bioética igualmente de forma ampla, incluindo a vida, a saúde e o ambiente como área de reflexão. Essa visão Profunda da bioética recai diretamente no respeito à vida, tanto no tocante à saúde como à fundação de mundo comum, ou seja, do espaço que teremos que perpetua até as próximas gerações. Sendo assim, há na bioética uma dimensão política muito forte a considerar, desde o direito a vida estendendo-se ao direito a ter direitos. Neste sentido, entendemos que a bioética guarda uma dissensão ético-política pautada na ação como proposta de parâmetro para seu ethos, isto é, para sua reflexão.

Pelo exposto anteriormente, destacamos a visão de Hannah arendt no tocante ao direito, como algo que se encontra alicerçado na relação entre os homens, e, na participação dos mesmos na vida da comunidade. É, portanto, a relação entre homens, o chão na qual se ergue à idéia de direito em Hannah Arendt. Isto é, a categoria própria para se pensar o direito em Hannah Arendt é a Ação. Sendo assim, cabe agora destacarmos, partindo desses princípios, a questão da bioética que podemos tranquilamente fundamentar na declaração de Nurembergue, que busca promover a vida através da liberdade do livre agir e do princípio de dignidade presentes nos seres humanos como seres singulares portadores de direitos. A declaração de Nurembergue de 1947 destaca pontos centrais para o tratamento dispensado à prática médica ou similar que envolva seres humanos de modo que não temos como pensar a bioética sem considerar esses fatos. Entendemos ainda que a visão de Hannah Arendt acerca do direito vem alicerçar as orientações desta declaração. Vejamos os 10 pontos centrais do texto de Nurembergue:

• O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente.

• O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente.
• O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento.
• O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais.
• Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento.
• O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe a resolver.
• Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota.
• O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 9. O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento.
• O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes.

O que se pode observar a partir da declaração de Nurembergue é que toda prática realizada em Auschwitz se contrapõe a essas orientações, haja vista que os campos de concentração serviram de “base experimental” para médicos e outros cientistas que usaram seres humanos sem considerar esses como portadores de dignidade e de direitos, apenas afirmavam serem as mortes frutos da eutanásia, isto quando davam alguma explicação, já que na maioria dos casos a prática era ocultada, as informações que vazaram cumpriram o papel de agentes de denúncia. Assim, podemos observar o hiato que se criou entre os direitos humanos e a prática científica com seres humanos, de modo que nosso mundo contemporâneo, a partir de tal fato histórico não pôde mais conviver com essas posturas sem considerar um ethos que iluminasse tais práticas e promovesse a reflexão acerca dos direitos do ser humano enquanto um ser portador de direitos, considerando como foco sua ação, isto é, como estabelecemos relações e como fundamos mundo. Em outras palavras, como criamos um espaço público de respeito ao outro. É nesse contexto que emerge a discussão em torno da bioética.

Cabe então, dado o exposto até o momento uma definição de bioética que compreendemos ser, segundo Hottois “uma disciplina ética que se formou em torno de pesquisas, práticas e teorias que visam interpretar os problemas levantados pela biotecnociência e pela biomedicina. Por isso, a bioética é necessariamente interdisciplinar e de identidade instável”. Assim, concluímos que a bioética não é uma filosofia sistemática, nem uma ética geral e menos ainda uma ciência, tendo a mesma um trânsito no saber tecnocientífico, de modo especial o biológico, percorrendo ainda o campo das ciências humanas, como a sociologia, a política, a ética e a teologia. O que marca seu caráter interdisciplinar.

Embora interdisciplinar a bioética não pode se furtar da sua matriz filosófica. É, portanto, fundamental que a bioética mantenha sua identidade filosófica quando discute pressupostos éticos, esclarece conceitos e valores, e toma decisões sobre situações concretas, como pronunciar-se pró ou contra o congelamento de embriões excedentes. Caso a bioética se afaste dessa posição, poderá tornar-se casuística, pragmática, sem raízes éticas, guiando-se apenas por espécie de jurisprudência, que toma decisões semelhantes em casos semelhantes. Isto não significa que a bioética deva distanciar-se das situações cotidianas. Mas, se ela abandonar o juízo ético-prático sobre casos concretos, suscitados pela biotecnociência, perde-se em abstrações e concepções universais, sem força para decidir eticamente sobre os problemas da biomedicina.

Assim, entendemos que as abordagens da bioética e dos direitos humanos estabelecem uma estrita relação conceitual e teleológica, haja vista suas implicações em defesa da vida, da promoção do bem e do espaço, seja físico ou natural, no qual a vida deva perpetuar-se. Trazemos, pois, a reflexão Arendtiana para o centro da problemática, por compreendermos que suas categorias de liberdade, ação, mundo comum e espaço público fundamentam essa defesa da vida proposta pela bioética de modo contemporâneo, sem perder de vista a ação dos homens na história.

Por fim concluímos que a reflexão a respeito da promoção da vida é que cada vez mais pertinente, e entendemos que a bioética e os direitos humanos cumprem um papel central nessa reflexão, haja vista o enfoque que ambas as abordagens destinam aos princípios da autonomia, da beneficência e da promoção da justiça. Sendo assim, entendemos que discutir os temas atuais de pertinência social e cientifica, como uso de células tronco, eutanásia, aborto, além de temas como aquecimento global, a fome e a violência, integram o escopo teórico da defesa da vida e do direito a ter direitos.

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domingo, 6 de junho de 2010

VERDADE E ESPAÇO PÚBLICO
EM HANNAH ARENDT

Prof. Ms. Ricardo George


A situação de um poder centralizador onde as decisões acontecem, sempre de cima para baixo, sem levar em conta a pluralidade e a liberdade dos indivíduos, foi a situação experienciada por Arendt, na Alemanha nazista. Essa experiência marcou-a, ainda mais, quando tomou consciência de Auschwitz em 1943, embora, de inicio, Hannah Arendt, que já estava fora da Alemanha, não tivesse acreditado no fato por entender que este não cabia no contexto em questão, em vista de não apresentar, segundo ela, “Qualquer objetivo militar” e por “ir de encontro a toda necessidade” contudo, o fato era real e verdadeiro e a partir daí ficava mais claro para Hannah Arendt o fato de que questões centrais da vida humana e da política estavam em xeque pelo momento histórico que se apresentava, de tal modo, que quando teve que acreditar em Auschwitz, pronuncio-se da seguinte forma:

“Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto poderia de alguma maneira se ajustar, como pode acontecer sempre na política. Mas neste caso não. Isso [a fabricação sistemática de cadáveres] nunca poderia te acontecido, (...)Auschwitz não deveria ter acontecido”

Essa experiência, por demais forte, que certamente a marcou como pessoa, também definiu seu campo de atuação, porquanto, tendo uma formação filosófica, negou-se a reflexões que se constituíssem por princípios últimos, haja vista que esse tipo de posição pode implantar, junto a outros fatores, o autoritarismo. A opinião do outro, nesse sistema, não vale nada, a ponto da vida ser ceifada por motivos de puro desatino autoritário. Hannah Arendt, chega a essa posição não de forma gratuita mas por ver que a Filosofia desde os gregos, legou a humanidade uma tradição, na qual a verdade poderia ser alcançada. Sendo assim, toda essa tradição teria de certa forma respaldado esses modelos políticos decisionistas, pois, quem tem a “verdade” não precisa pôr em debate nenhuma questão. Termos como pluralidade e espaço público passam a ser figuras de retórica, sem nenhum significado contundente, mas apenas denominações de massa conduzida pelos iluminados
É justamente contra isso que Hannah Arendt se posiciona, isto é, contra posturas que negam o espaço público, ou seja , a possibilidade dos indivíduos se articularem e discutirem propostas, fazendo valer o direito de expressão e de ação , sem medo da repressão ceifadora de vidas e liberdades. Nesse sentido, Hannah Arendt se identifica muito mais como pensadora política e, mesmo assim, não trabalha a cerca de verdades, porquanto suas teses são reflexões que, lançadas, possam ou não servir de ponto para uma reflexão, de tal modo que propagar verdade em política é sempre um risco, que cedo ou tarde poderá desembocar em autoritarismo.
Dada essa posição inicial, evidenciam-se duas questões centrais, que nos propomos aqui a refletir em torno do pensamento de Hannah Arendt:
• A questão da verdade na política
• O espaço público
A questão da verdade se põe primeiramente na disputa entre a verdade racional e a verdade fatual. A verdade racional é por excelência contemplativa chegando a ter características solipsistas , na medida que ela não pode ser comunicada, pois cada indivíduo tem que a encontrar por si mesmo. É o modelo socrático, aderido por Platão.
A grande questão da verdade racional é o que essencialmente a constitui, ou seja, ser sempiterna e trazer em si princípios que podem servir para estabilizar as questões dos homens em seu cotidiano, ou seja, surge de um passeio do filósofo pelo céu das idéias, em busca de princípios últimos e inquestionáveis, isto é, de verdades inabaláveis. Nesse sentido, a verdade racional é alcançada por espíritos especiais, que conseguem atingir um nível de reflexão suficiente para dar conta do mundo pelos princípios antes encontrados em suas reflexões. Admitir essa postura da verdade racional,contudo, é acolher um caráter aristocrático, seletor, no qual está determinado quem tem a verdade e a quem todos devem seguir. Talvez, tenha sido esse o grande equivoco da tradição filosófica, no tocante a política: pensar modelos acabados, paradigmas a serem seguidos, esvaziando a capacidade dos homens da praça de se organizarem por si próprios no processo político, sem a intervenção de uma iluminação que parta de único indivíduo.
A proposta platônica de que o bom governo da pólis ocorreria quando os reis se tornassem filósofos ou filósofos reis, é uma posição que traz, potencialmente, traços autoritários, tirânicos, ao se considerar os riscos que são enormes. Enormes porque a verdade alcançada pelo filósofo-governante não pode ser comunicada à grande massa. O que teríamos de fato seria um rebanho, crédulo e ingênuo, politicamente anulado pelo controle dessas verdades sublimes, que estariam localizadas em um indivíduo ou em uma casta especial.
É compreensível que a busca dessa verdade acabada tenha a pretensão de superar a posição sofista que sacrificava as verdades em nome de suas vitórias passageiras via argumentação. Assumir esse modelo não é a melhor saída, haja vista que nossa época nos legou outro modelo de sofista que não se satisfaz em anular argumentos, mas empreende forças para negar fatos comprometendo aquilo que é o evento histórico, situação primordial da verdade fatual, de tal modo que a luta hoje contra os sofistas continua, só que os atuais estão a usar outros alvos; de qualquer forma, utilizar modelos absolutos de uma verdade pessoal, unilateral, não é a saída.
“A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento ás custas da verdade , enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura mesmo que ás custas da realidade. Em outras palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da ação humana. O filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos fatos que destroem a própria história e sua inteligibilidade”
Pensamos que estão claras as características da verdade racional e suas implicações, de modo que outra postura de verdade totalmente antagônica agora ocupa nossa reflexão: é a verdade fatual, isto é, a verdade montada no espaço e no tempo, portanto, histórica e totalmente imersa nos negócios humanos, não tendo qualquer relação com princípios últimos e acabados.
A verdade fatual é a verdade da vida , ou seja, a verdade que corresponde à atuação do homem no espaço publico. Esta encerra como maior marca a ação, e somente ocorre quando aos indivíduos é possibilitado o direito de fala e de ação, embora muitas vezes as situações sucedam para negar isto em favor de um grupo ou indivíduo que pretenda controle total; de qualquer forma, a ação e sua ocupação histórica a demarcam diferenciando-a de qualquer verdade contemplativa.
Ainda é de se observar que nessa comparação direta entre a verdade fatual e a verdade racional, evidencia-se a fragilidade de verdade fatual, não uma fragilidade qualquer, que lhe possa trazer um abalo circunstancial, mas uma fragilidade que pode a eliminar a ponto da mesma desaparecer , visto que os acontecimentos históricos, isto é, aquilo que é da ordem dos assuntos humanos, é potencialmente mais frágil do que as teorias elaboradas pela verdade racional.
O uso do poder nesse contexto é central, na medida que fatos podem ser distorcidos e manipulados em favor de quem detém o poder. Sendo assim, podemos tranqüilamente afirmar que a verdade fatual é, sobretudo, uma verdade política. É política porque insere-se no âmbito dos negócios humanos. É política porque é presente na vida ativa e, como fato, ela é passível de mentira, de engano ardiloso para manutenção do poder, ainda que no plano dos controles e manipulações.
O que fica evidente é: a razão produz verdades que são contrariadas no patamar do erro e da ignorância, mas a verdade factual é contrariada pela mentira, na medida que esta é histórica.
“Embora, as verdades de maior importância política sejam as factuais, o conflito entre verdade e política foi descoberto pela primeira vez com respeita á verdade racional. O contrário de uma asserção racionalmente verdadeira é ou erro ou ignorância, como nas ciências, ou ilusão ou opinião como na filosofia. A falsidade deliberada a mentira cabal, somente entra em cena no domínio das afirmações factuais.”

A verdade fatual enfrenta um questionamento que é da ordem da verdade racional, ou seja, é por muitas vezes localizada como ilusão, e aqui aparecem pelo menos duas implicações. A primeira é: o poder em vigor sempre há que camuflar ou distorcer, ou, pelo menos, vai tentar realizar isso, pondo a verdade fatual no âmbito da ilusão, como algo irreal, a medida que isso o protege, pois tira o caracter da verdade factual do âmbito do evento e o situa no contexto da dúvida sem maiores evidências, ou seja, o poder aqui entra como contador da verdade, negando testemunhas e a própria história, subverte a verdade do fato em ilusão e dilui a história, pondo em risco o espaço público, onde ocorre livremente a ação. Ferido por essa distorção, o espaço público corre o risco de ser negado e desembocar em puro autoritarismo. Aí reside a segunda implicação. É válido, porém, lembrar o que nos diz Hannah Arendt: fatos e opiniões mesmo separados não são antagônicos , um completa ao outro, eles pertencem ao mesmo domínio .
Portanto, a opinião não pode contrariar o fato, de tal modo que as implicações da verdade fatual se fortalecem pelas opiniões, na medida em que o evento histórico é testemunhado, tendo por base que mesmo em uma diversidade de opiniões sobre o fato, isso não tira dele a condição de evento histórico. Assim, quando propagado, só se fortalece contra o risco de desaparecer, e o anuncio dos eventos que envolvem os negócios humanos aparece, nesse sentido, como uma garantia de verdade do mesmo, para que continue sendo discutido e analisado, embora saibamos que ao poder, com ânsia de controle, o que importa é pôr o evento no esquecimento ou minar sua credibilidade.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Estado e Sociedade Civil em Hegel

Por Ricardo George em 04/02/2010


1. Sociedade Civil em Hegel
Hegel foi o primeiro a desenvolver uma conceitografia em torno do termo Sociedade Civil e a estabelecer os limites existentes entre esta e o Estado, ou seja, foi o primeiro a pontuar a diferença existente entre Estado e Sociedade Civil preocupando-se em destacar a cada instância sua própria esfera de ação.
Assim, temos que a filosofia política de Hegel, “filosofia do espírito objetivo” ou “filosofia do direito”, apresenta-nos uma organização sistemática da ação humana e de suas obras na história: as “objetivações” do espírito. A ação do homem articula-se, segundo Hegel, em três níveis: família, sociedade civil e Estado. Para nosso propósito, interessam-nos os dois últimos: sociedade e Estado. Toda ação humana é movida por interesses dirigidos à obtenção de bens específicos. Sem interesse não há ação. O que caracteriza e diferencia a sociedade civil e o Estado é, para Hegel, a natureza, particular ou geral, do interesse que move os homens à ação ou do bem que buscam por meio dela. As ações que derivam de um interesse particular dão origem à sociedade civil. E se inscrevem nela. Por outro lado, o Estado é produto de uma ação que obedece ao interesse geral de toda a coletividade. Dirige-se ao bem universal. Este princípio de distinção entre sociedade civil e Estado é, de um ponto de vista puramente metodológico, útil para estabelecer a diferença entre o social e o político. Hegel denomina a sociedade civil, também, de “sistema das necessidades”. Surge da dinâmica imposta pela satisfação das necessidades particulares. A ação que conduz das necessidades à sua satisfação gera um fluxo de nexos recíprocos entre os homens e cria um nível específico de interação e comunicação: a sociedade civil. Nas palavras de Hegel:
“Contém a Sociedade Civil três momentos: A) A mediação da carência e a satisfação dos indivíduos pelo seu trabalho e satisfação de todos os outros: é o sistema de carências; B) A realidade do elemento universal de liberdade implícito neste sistema é a defesa da propriedade pela justiça; C) A preocupação contra o resíduo de contingência destes sistemas e a defesa dos interesses particulares como de administração e pela corporação” (Hegel, 1997, p.173)

De modo que para Hegel se impõe nesse contexto a necessidade individual, a questão da propriedade e do trabalho. Para o filósofo de Berlim é graças à propriedade que o indivíduo se insere no corpo social e jurídico. Emerge, portanto, a propriedade como momento destacado do desenvolvimento do espírito humano, pois a mesma destaca-se como porta de inserção dos indivíduos na vida legal. Hegel entende que, nesse contexto, o indivíduo necessita trabalhar para satisfazer suas necessidades e incrementar sua propriedade. Contudo, ninguém pode satisfazer sozinho, mediante seu próprio trabalho, todas as suas necessidades. Assim, o que produz e possui, necessita do outro e vice-versa.
Assim, temos que todos passam a carecer dos produtos do trabalho alheio. Desse modo, através do mercado, desenvolvem-se vínculos de interdependência generalizada entre todos os membros de uma coletividade. Esse sistema de interdependência é dinâmico. O trabalho transforma permanentemente os meios de satisfação das necessidades, as mercadorias (tanto os “meios de produção” quanto os bens de consumo). Estes, por sua vez, vão modificando as necessidades. Engendra-se, então, uma dialética permanente entre trabalho, meios de satisfação e necessidades (e entre oferta e procura, segundo os economistas), que confere peculiar dinamismo à sociedade civil . A produção, a distribuição, o intercâmbio e o consumo de mercadorias, objeto da economia política clássica, configuram este sistema que põe as necessidades de uns em conexão com os meios para satisfazê-las, possuídos por outros.
De acordo com o tipo de atividade econômica que desempenha, a população se divide, segundo Hegel, em três grandes “massas” ou “classes”. Obviamente seu conceito de classe pouco tem a ver com o de Marx e se aproxima mais ao de estamento da sociedade medieval. As três classes, ou estamentos, são: a substancial, formada pelos agricultores: a geral, constituída pela burocracia do Estado; e a intermediária ou dos industriais.
Para Hegel, cada um desses estamentos oferece uma contribuição específica à satisfação das necessidades sociais. Tem sua identidade, seus próprios costumes e sua ética. A identidade de cada estamento, e seu caráter complementar, é um elemento fundamental da coesão e da coerência da sociedade civil hegeliana.
Por fim, nosso objetivo primeiro de definir a Sociedade Civil em Hegel parece estar minimamente realizado, na medida em que a reconhecemos como o momento intermediário entre a família e o Estado, representando esta, na categoria da Eticidade; o momento negativo, ou seja, a fase do desenvolvimento histórico em que ocorre a dissolução da unidade familiar . Por conseguinte podemos concluir sobre a sociedade civil em Hegel que:
a) O primeiro princípio da sociedade civil é a pessoa concreta com suas necessidades e busca de satisfação da mesma via trabalho;
b) O segundo princípio é a Universalidade, que deriva do primeiro, uma vez que a particularidade, em busca de satisfazer seu egoísmo, entra em relação com outras particularidades. Sendo esta a condição de efetivação de seus fins.
c) Na sociedade civil cada um é um fim para si – embora almeje o outro, que aparece como meio para efetivação dos fins desejados, o que acaba por gerar uma dependência universal.
d) O homem da sociedade civil ainda não é o homem racional, é o homem do trabalho, em virtude da necessidade. Por isto, a sociedade mantém uma relação finita, própria do entendimento, isto é, unidade externa e não interna das pessoas. Cada indivíduo é tido como fim e isto é específico da esfera econômica – pelo qual o diverge da esfera política.
e) O homem é ser carente que produz e consome.
f) No tocante à dimensão política o homem é um ser portador de direitos universais, não existindo um direito natural. Portanto, todo direito é positivo “o sujeito do direito não é um homem natural, mas o homem do mundo da cultura que alcança o reconhecimento universal”
g) É o momento que antecede a realização da Razão e da Liberdade: o Estado.

2. O Estado em Hegel

Hegel pretendeu restabelecer o reinado da razão, uma razão ampliada, na qual coubessem todas as obras da criação do espírito humano - arte, religião, cultura, sistemas políticos - na história, cujo sentido específico ele procurava discernir. Na expressão de Châtelet, "a razão, que até então era da ordem do discurso, ou dessa ou daquela pessoa privada, tornava-se apanágio da sociedade inteira" (Châtelet, 1994, p. 116). Châtelet explicitou o porquê de falar desse apanágio. Antes dos gregos os homens eram homens, mas viviam sem pensar na liberdade; o conjunto da população era dominado, embora houvesse entre eles alguns homens livres, os chefes (Châtelet,1994,p. 114). Para Hegel, a razão serviu de instrumento de compreensão entre esses diversos homens livres, sendo assim construído o projeto do discurso racional. Mas, sobreveio a decadência dessa tese (gregos), e se afirmou a antítese como superação (os romanos). E foram sucedendo diferentes superações. Esse devir, o devir como tal, é essencialmente dramático: para desempenhar o seu papel na história, um povo é até mesmo obrigado a vencer pela violência a figura que o precede. Assim que, finalmente, com o herói, Napoleão Bonaparte, e com as transformações após o seu fracasso, estabeleceu-se o Estado moderno (Châtelet, 1994: p. 114-6). Segundo Hegel, o Estado moderno é a realização da razão - razão, agora, como apanágio da sociedade inteira .
Para Hegel, o Estado de Napoleão era a realização da razão. Contudo, há um texto extraído do Princípio da filosofia do direito, obra de maturidade de Hegel, que indica os seus cuidados tanto por pensar a universalidade e o absoluto como por considerar a particularidade. Alcançava ele um equilíbrio melhor, dir-se-ia capaz de corrigir a pura imposição estatal, implicada em saber absoluto ou em verdade, concentrados numa forma de Estado:

"A essência do Estado moderno consiste na união da universalidade com a total liberdade da particularidade e da prosperidade dos indivíduos, de modo que, por um lado, o interesse da família e da sociedade civil deve ajustar-se ao Estado, mas, por outro, a universalidade da finalidade não pode progredir sem o saber e o querer da particularidade, que deve conservar o seu direito" (apud. Châtelet, 1994: p. 116; o grifo é nosso)”.

Na “Filosofia do Direito” de Hegel, o Estado aparece como o fim da atividade da vida ética de uma comunidade (que une família e sociedade civil). Em outras palavras, a forma estatal tem primazia ontológica enquanto “efetividade da vontade substancial, efetividade que ela tem na autoconsciência particular erguida à universalidade do Estado”. Desse modo, o conceito de Estado não surge somente como aparato institucional, mas como a forma que efetiva a realização social (finita) plenamente – isto é, que agrega toda a vida ética. Consoante Hegel:

“ O Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade” (HEGEL, 1997, §257).

Daí decorre que a “realidade da ideia ética” nada mais é ...

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