sábado, 30 de abril de 2011

A recuperação do homem natural em Feuerbach ou para crítica da filosofia especulativa

Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva

1. Introdução

Ludwig Andreas Feuerbach, apesar de pouco pesquisado na academia, foi um pensador contundente para sua época, primeiro pela coragem de dialogar com a tradição, assumindo, assim, um pressuposto filosófico fundamental qual seja: o enfrentamento dos sistemas por dentro, isto é, buscando a crítica a partir de um diálogo direto com os autores por ele elencados, segundo pela inovação ao contrapor a perspectiva filosófica dominante na época que era o idealismo Alemão, que encontrava em Fichte, Schelling e Hegel seus maiores representantes.
Feuerbach tem como seu objeto fundamental, a nosso ver, a recuperação do homem natural, sensível, historicamente determinada, isto é, o homem perdido pela tradição ocidental que o esvaziou em conceito, no caso da filosofia, ou o transformou em consciência frustrada, na medida em que ansiava por outra dimensão, e considerava tudo que era humano como degenerativo do espírito, que um dia iria alcançar a Jerusalém celeste, como no caso do cristianismo. Assim, temos em Feuerbach dois caminhos utilizados para realizar tal empreitada, embora acabem por ser um, ou seja, a crítica à religião e a crítica à filosofia especulativa, que se expressa, segundo o pensador, como religião ou teologia do conceito, e, nessa perspectiva, segundo o filósofo de Landshut, Hegel é a maior expressão.
Feuerbach encontrou no Hegelianismo uma filosofia que o permite pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou como ele expressará o gênero. O que levará a se distanciar do sistema hegeliano é a ambiguidade como este apresenta a religião. O velho Hegel e ainda mais os hegelianos de primeira hora tendem a deixar a religião e a filosofia lado a lado, em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde cedo de pensar o gênero ou essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num ser transcendente, um desconhecido da verdadeira natureza humana de sua relação com o divino que a caracteriza.
Temos, assim, a pretensão de trazer à baila a crítica de Feuerbach a toda forma de filosofia especulativa ou saber que desconsidere a empírica vida dos homens. Portanto, nosso trabalho quer ser uma provocação elucidativa do pensamento do referido autor, não tendo a pretensão de esgotar ou encerrar quaisquer questões sobre o mesmo. Faremos uso de textos centrais do pensador, sobretudo, Necessidade de uma Reforma da filosofia (1842) Princípios da filosofia do futuro (1842), e Teses provisórias para a reforma da filosofia (1843) .

2. Crítica à filosofia Hegeliana ou para construção de uma nova filosofia

Feuerbach parte do pressuposto de que a filosofia de Hegel, apesar de todos os méritos, padece de realidade empírica na medida em que esvazia o mundo dos homens de suas determinações, ficando o mesmo apenas com a idealidade, e tomando esta por realidade. Acaba Hegel por ser a culminância de toda uma maneira de se fazer filosofia que não considerou de forma aguda a existência dos homens, por valorizarem o supra-sensível em detrimento do sensível.
A pretensão de Feuerbach, ao romper com Hegel, é reformar a filosofia, é tirar esta do céu das idéias e a colocar no mundo dos homens. De modo que se faz necessário afastar-se da especulação estéreo da filosofia idealista que não passa de racionalização da teologia. O convite aqui posto por Feuerbach recai sobre uma filosofia que considere o humano enquanto humano, uma filosofia com força positiva, por ser negativa. Uma filosofia que não teme a ruptura para encontrar-se com a realidade. Portanto, uma filosofia que vá além do hegelianismo e do cristianismo salvacionista, consoante Feuerbach

“A filosofia Hegeliana foi à síntese arbitrária de diversos sistemas, de insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta. Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo que tem a força de criar a novidade (...). O cristianismo já não corresponde nem ao homem teórico, nem ao homem prático; já não satisfaz o espírito, nem sequer também satisfaz o coração, porque temos outros interesses para o nosso coração diversos da beatitude celeste e eterna” (FEUERBACH, 1988 p. 14 )

Assim, observamos que as críticas à postura de Hegel, realizadas por Feuerbach, representam uma tomada de consciência da realidade sensível. Tal fato é visível no pensador materialista desde seus trabalhos iniciais quando o mesmo afirma que a filosofia de Hegel não passa de um logocentrismo, constatação essa feita na obra “Para a crítica da filosofia Hegelina” (1839), ou seja, a filosofia de Hegel estabelece uma centralidade absurda no conceito, na postura idealista, nas realidades extra-mundo, no racionalismo anti-histórico. Para Feuerbach, a filosofia não pode começar pressupondo a si mesma, mas, ao contrário, iniciar com o não-filosófico; assim, o pensamento deve entrar em diálogo com o que é da ordem do empírico. Dessa forma, Feuerbach propõe, contra as mediações infinitas do sistema hegeliano, uma retomada da imediatidade tanto do pensamento quanto da intuição sensível, levando ambas a um diálogo.
Feuerbach, nas teses provisórias para uma reforma da filosofia (1842), rompe definitivamente com a especulação hegeliana e com seu próprio ideal teórico-prático da filosofia, e o faz reconhecendo positivamente na religião sua capacidade de satisfazer as necessidades do coração e do sujeito sensível, sua afirmação da sensibilidade e da certeza imediata. A nova filosofia deveria resgatar precisamente este momento da religião, possibilitando a conciliação entre filosofia e vida, essência e individualidade, teoria e prática.

“A essência da teologia é a essência do homem, transcendente, projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do homem” (FEUERBACH, 1988 p.21)

Dividir o homem, cindi-lo em seu existir foi a tarefa da tradição filosófica, que negou a sensibilidade. Esta filosofia, chamada de idealismo, em sua busca de uma essência infinita, esqueceu-se do homem, este foi por um processo de exteriorização de sua essência, isto é, daquilo que o faz humano, negligenciado. Urge, pois, um novo entendimento, e este só pode ser o de resgatar o homem natural e sensível, daí a nova filosofia ter quer iniciar com o finito, enxergando nesse o próprio infinito e ascendendo do concreto para o abstrato.
Aqui, o salto a ser dado reside no resgate dos elementos positivos da religião, quais sejam: sua afirmação das necessidades do coração e da certeza sensível. A nova filosofia brotará do próprio homem que pensa a si mesmo, descobrindo-se em sua essência como a infinita perfectibilidade, e não como algo pré-formado e dado de uma vez por todas.

“A nova filosofia, a única filosofia positiva, é a negação de toda a filosofia de escola, embora dela contenha em si a verdade, é a negação da filosofia como qualidade abstrata, particular, isto é, escolástica: não possui nenhum santo-e-senha, nenhuma linguagem particular, nenhum nome particular, nenhum princípio particular, ela é o próprio homem pensante – o homem que é e sabe que é a essência autoconsciente da natureza, a essência da história, a essência dos Estados, a essência da religião – o homem que é e sabe que é identidade real (não imaginária), absoluta, de todos os princípios e contradições, de todas as qualidades activas e passivas, espirituais e sensíveis, políticas e sociais – que sabe que o ser panteísta, que os filósofos especulativos ou, antes, os teólogos separavam do homem, e objetivavam num ser abstracto, nada mais é do que a sua própria essência indeterminada, mas capaz de infinitas determinações” (FEUERBACH. 1988 p, 32-33)

Para Feuerbach, a verdadeira filosofia deve considerar a natureza em sua realidade mesma e não duplicá-la, ou ainda esvaziá-la de suas determinações. Não cabe, pois, à filosofia negar o que é, ao contrário, é tarefa sua por em evidência a essência mesma da coisa, e a essência da natureza é o homem sensível, histórico e não uma formulação abstrata. Segundo o pensador em questão, “A filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e os seres como são – eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia” (FEUERBACH, 1988, p. 26). Assim, temos a filosofia especulativa e, de modo especial, Hegel realizou um caminho inverso da verdadeira filosofia. A filosofia especulativa tem como objeto o absoluto. Contudo, o absoluto do idealismo é ilusão, é pura forma, carece de conteúdo de necessidade. O absoluto do idealismo é ser sem limites, sem carência. A nova filosofia não tem como conceber tal ser, sob pena de não realizar sem intento de superar tal estrutura. Uma filosofia que considere o existir sensível não pode, por exemplo, negar dimensões fundamentais desse existir, como o espaço e o tempo, tais estruturas “são formas de revelação do infinito real.” (FEUERBACH, 1998, p.27). Reconhecer a vida e a natureza presente nela é reconhecer a necessidade, a contingência, a dor, o sofrimento. O resgate do homem natural passa por assimilar suas características fundamentais, negadas ao longo do tempo pela filosofia especulativa. De acordo com Feuerbach:

“Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma aflição, também aí não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum espírito, nenhuma chama, nenhum amor. Só o ser indigente é o ser necessário. A existência sem necessidade é uma existência supérflua. O que é em geral isento de necessidade também não tem qualquer necessidade da existência. Quer ele seja ou não é tudo um – um para si, um para os outros. Um ser sem indigência é um ser sem fundamento. Só merece existir o que pode sofrer. Só o ser doloroso é um ser divino. Um ser sem afecção é um ser sem ser. Mas um ser afecção nada mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria.” (FEUERBACH, 1988, p. 27)

A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa incide na dificuldade desta de reconhecer a vida e seus componentes como objeto. O mundo dos homens não tem valor investigativo para a filosofia especulativa, a constatação mais eminente disso talvez seja a argumentação da ciência da lógica hegeliana ao tratar o “Nada” enquanto fundamento na medida em que concebe o absoluto como puro ser. Assim, “Hegel começa, como mencionado, com o puro ser ou, melhor expresso, com o conceito do ser ou com o ser abstrato, vazio mesmo, pelo qual ele quer assentar o primeiro princípio da filosofia, o primeiro cientificamente. Em oposição a Hegel, Feuerbach pergunta em seu escrito Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (Para a Crítica da Filosofia Hegeliana) (1839): deve o princípio do filosofar, como Hegel o concebe ser o conceito abstrato do ser? “Por que eu não devo começar com ser mesmo, isto é, com o ser real? Ou por que não com a razão, já que o ser, na medida em que ele foi pensado, tal como ele é objeto na ‘Logik’, me remete imediatamente à razão?’’ (FEUERBACH, 1970, p. 23-24) Ou melhor: se Hegel começa com o espírito absoluto (com a razão, o saber absoluto),ele não inicia já com um pressuposto?”. Feuerbach provoca um retomada do ser ao questionar Hegel na sua opção de partir do indeterminado, do não-ser. Novamente a crítica a Hegel remete a uma nova abordagem do filosofar. De tal forma, que uma filosofia que não tenha como objeto o homem em suas determinações, não pode ser contudente. Assim, “O filosófo deve introduzir no texto da filosofia aquilo que no homem não filosofa, o que, pelo contrário, é contra a filosofia, que se opõe ao pensamento abstracto, portanto, o que em Hegel se reduz a simples nota.” (FEUERBACH, 1988, p.28).
A ruptura de Feuerbach com a filosofia de Hegel vai ganhando corpo a ponto de o pensador materialista propor um abandono da filosofia hegeliana, sob pena de não romper com a égide da teologia, o que implica que para Feuerbach o idealismo especulativo de Hegel equivale à teologia ou, entre palavras, a filosofia hegeliana não passa do recôndito dos racionalistas, sua última morada, com isso, parece-nos que Feuerbach elabora duas críticas: a primeira seria positiva, um elogio a Hegel, ao reconhecer em seu pensamento a forma mais acabada desse paradigma de filosofia, a segunda seria negativa, na medida em que já não é mais possível se filosofar a partir de um ser que é um não ser, ou seja, um vazio de determinações. Consoante o filosofo de Landshut:
“Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana de que a natureza é a realidade posta pela idéia é apenas a expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é, um ser abstracto (...) A filosofia Hegeliana é o último lugar de refúgio, o último suporte racional da teologia. (FEUERBACH, 1988, p.31) ...

OBS: Texto completo em PDF. acesse ao lado

sábado, 23 de abril de 2011

O que significa Cidadania?

Por Ricardo George

Estamos vivendo em sociedade que avança consideravelmente no campo tecnológico e econômico. Contudo, sempre fica a pergunta se avanços dessa natureza implicam na inclusão das pessoas e, até onde, isto pode implicar na construção da cidadania. Muitas vezes observarmos o “bolo crescer”, mas suas fatias ficam nas mãos de poucos. Diante dessas provocações queremos esclarecer minimamente o conceito de cidadania, ao passar pela história deste conceito, considerando que o mesmo é uma construção social, ou seja, algo realizado pelos seres humanos agindo em conjunto.
Assim, temos que a cidadania é um processo em constante construção, que teve origem, historicamente, com o surgimento dos direitos civis, no decorrer do século XVIII – chamado Século das Luzes –, sob a forma de direitos de liberdade, mais precisamente, a liberdade de ir e vir, de pensamento, de religião, de reunião, pessoal e econômica, rompendo-se com o feudalismo medieval na busca da participação na sociedade. A concepção moderna de cidadania surge, então, quando ocorre a ruptura com o Ancien Régime, em virtude de ser ela incompatível com os privilégios mantidos pelas classes dominantes, passando o ser humano a deter o status de "cidadão".
O conceito de cidadania, entretanto, tem sido freqüentemente apresentado de uma forma vaga e imprecisa. Uns identificam-na com a perda ou aquisição da nacionalidade; outros, com os direitos políticos de votar e ser votado. No Direito Constitucional, aparece o conceito, comumente, relacionado à nacionalidade e aos direitos políticos. Já na Teoria Geral do Estado, aparece ligado ao elemento povo como integrante do conceito de Estado. Dessa forma, é fácil perceber que no discurso jurídico dominante, a cidadania não apresenta um estatuto próprio, pois na medida em que se relaciona a estes três elementos (nacionalidade, direitos políticos e povo), apresenta-se como algo ainda indefinido.
A famosa Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, sob a influência do discurso burguês, cindiu os direitos do "Homem" e do "Cidadão", passando a expressão, Direitos do Homem, significar o conjunto dos direitos individuais, levando-se em conta a sua visão extremamente individualista, cuja finalidade da sociedade era a de servir aos indivíduos, ao passo que a expressão, Direitos do Cidadão, significaria o conjunto dos direitos políticos de votar e ser votado, como institutos essenciais à democracia representativa.
Com o triunfo do liberalismo, sufocou-se, então, a idéia de democracia, que só ocorre quando todas as camadas da sociedade têm as mesmas oportunidades de participação no processo econômico, fato pouco observado nos dias atuais. O que observamos é que a cidadania anda maculada, pois milhões de pessoas ainda se encontram abaixo da linha da pobreza. É impossível sustentar que alguém seja cidadão porque vota. Somos cidadãos porque gozamos de direitos em sua expressão formal e substancial. Se esses direitos não se materializam em educação de qualidade; saúde pública relevante; acesso a cultura e a justiça; moradias dignas entre outros, o conceito de cidadania emerge apenas como um belo adereço conceitual. Lutemos, pois, de forma consciente, para uma cidadania que expresse a garantia dos direitos.