sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Texto: A parábola do senhor e do escravo...

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Fiat Verita, et pereat mundus, considerações em torno da Politica e da Verdade

Prof. Ricardo George
obs: Texto apresentado no VI Encontro Hannah Arendt em Pelotas -RS, em maio de 2012. Publicado nos anais.


Quando nos ocupamos do tema da verdade e de sua relação com a questão política, sabemos estar adentrando um terreno espinhoso. Todavia, o momento histórico em que a nação brasileira vive sob e emergência de uma comissão da verdade, aprovada em outubro de 2011, pelo senado brasileiro e instalada em Maio de 2012 pela Presidenta Dilma Rousseff, marca a relevância da discussão em torno da questão. Esta comissão terá por missão nos próximos dois anos apurar  violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar no Brasil.
            Aqui já emerge uma de nossas preocupações fundamentais, qual é o lugar que ocupa a verdade? Sobretudo, a verdade factual. Esta segundo Arendt carece de proteção e resguardo político. Não há melhor lugar para se preservar a memória dos fatos que sua inteira manifestação ao público, na esteira do pensamento de Hannah Arendt, no bojo do espaço público. Nenhum outro lugar protege mais a verdade factual, do que o olhar plural. O projeto de lei que legitima a comissão está ciente disso quando revela em seu Art. 5º que “As atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade serão públicas”, como serão públicas suas conclusões, conforme Art.3ºque dispõe sobre os objetivos, no qual se relata no inciso III – “identificar e tornar públicas as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações  de direitos humanos”
Assim, nos deparamos com a necessidade de refletir sobre o tema como resgate necessário da verdade e da memória política. Não nos ocuparemos da ditadura no Brasil ou da comissão da verdade em si. O que nos interessa é com este pano de fundo refletir sobre a questão da verdade e sua relação com a política. Todavia, queremos enfrentar essa questão seguindo a trilha do pensamento Arendtiano destacando três momentos, a saber: a) conceituar política em Arendt, no intuito de encontrar qual seu sentido; b) estabelecer as diferenças entre a verdade factual e racional; c) discutir os engodos que nos impõe a mentira e seu uso nos referidos fatos históricos.
Ao nos depararmos com as questões que envolvem a política, somos levados a considerar que passamos a trilhar o campo da dissimulação e engodo. Não sem razão, tomamos esta situação como fato estabelecido, haja vista que na dimensão prática da política, esse expediente é uma constante na qual o engano e, a mentira, gozam do status de atitude necessária em detrimento da verdade. Para agudizar a questão, no campo teórico, muitos defendem a necessidade da mentira como artifício político necessário, outros a necessidade do alcance da verdade em plenitude, onde indivíduos seriam capazes de ter em seu entendimento a verdade absoluta dos fatos em detrimento do entendimento dos seus pares. Assim, proliferou-se, em nosso meio, um descrédito vigoroso em torno da política. Diante de tais constatações, ficamos nos indagando: é possível a relação entre verdade e política? É possível o uso da mentira pra garantir outros ganhos considerados mais nobres?
Não pretendemos, com essas indagações, fornecer alguma resposta acabada ao problema, destarte, guiados pelo pensamento Arendtiano, propomos uma reflexão no intuito de estimular o debate em torno do problema que salta aos nossos olhos cotidianamente, a saber: o da convivência turbulenta entre política e verdade

1 A Noção de Política em Arendt


            Neste primeiro, momento iremos buscar a definição de política para Arendt, sem ainda pormenorizar o debate com a questão da verdade. Hannah Arendt parte do pressuposto que o conceito de política desenvolvido pela tradição guarda equívocos. Equívocos estes que acabam por tornar opaca a visualização daquilo que representa a política. Arendt demonstra que a tradição esvaziou de sentido a política ao retirá-la do convívio da praça, isto é, de elevar os negócios humanos ao lócus das ideias sempiternas, onde os conceitos reinam absolutos em detrimento da vida real e contingente. Neste sentido, seu objetivo era demonstrar o quanto a tradição supervalorizou a vida contemplativa, que na busca das verdades eternas abandonou a ação, categoria política fundamental para Arendt (Cf, SILVA, 2011, p, 13).
                Assim, conforme Aguiar (2001, p, 74) o sumo da significação política da ação em Arendt reside na noção de pluralidade. Com esse termo, a autora visa a contrapor-se  radicalmente à posição contemplativa e afirmar a necessidade de se considerar os cidadãos e seus interesses e perspectivas (doxas), na constituição da comunidade política. Tais constatações nos colocam na rota da conceitografia Arendtiana da política, na medida em que a autora afirma que “A política se baseia no fato da pluralidade humana. Deus criou o homem, mas os homens são um produto humano, terreno, um produto da natureza humana” (ARENDT, 2010, p,144). Nesta perspectiva, somos autorizados a afirmar que apenas na esfera dos negócios humanos e, em meio, a pluralidade é que ação política acontece, sem o risco do esvaziamento de sentido, ao se buscar um lugar pretensamente seguro fora do mundo, quando seu maior papel deveria ser a proteção deste. Mundo aqui entendido, em seu sentido político de acordo com André Duarte (2002, p, 64)  como aquele conjunto de instituições e leis que é comum e aparece a todos, e que, por ser um artefato humano, está sujeito ao desaparecimento em determinadas situações-limites, nas quais se abala o caráter de permanência e estabilidade associados à esfera pública e aos objetos e instituições políticas que constituem o espaço-entre que unifica e separa os homens. Trata-se, portanto, daquele espaço institucional que deve sobreviver ao ciclo natural da natalidade e mortalidade das gerações, e que se distingue dos interesses privados e vitais dos homens que aí habitam, a fim de que se garanta a possibilidade da transcendência da mortalidade humana por meio da memória e da narração das estórias (stories) humanas.
Estes esclarecimentos sobre a política nos conduz, ao entendimento dessa atividade, como aquilo que deve ser desenvolvido por iguais e livremente estabelecida em que se garanta a todos o direito de isegoria, isto é, igualdade de fala e manifestação.
Em suma, a política é a atividade que protege o mundo na medida em que vislumbra a permanência deste, via natalidade e pluralidade, contrariando a lógica da tradição, que fez da política contemplação e, contrariando a lógica da modernidade que reduziu à política a proteção da vida privada, tornando esta serva da economia, inscrita numa sociedade de consumidores pautados na lógica do consumo. (CF, ARENDT.2001a, p,138)
            Tendo posto isto, entendemos ter demarcado o conceito de política em Arendt e sua implicação com a ação e a pluralidade. Agora nossa pretensão recai sobre a relação da política com a verdade em suas perspectivas de verdade factual e teórica.

 

 2 Política, Verdade e Espaço Público


                Tomamos como ponto de discussão a partir de agora  a questão da verdade e sua relação com a política. Assim, a primeira grande questão que se apresenta diz respeito à relação desse par conceitual ao ponto de Arendt esclarecer que
Jamais alguém pôs em dúvida que  verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista. Por que é assim? (...) É da essência mesma da verdade o ser impotente e da essência do poder o ser embusteiro?  (ARENDT, 2001b, p, 283)

                A constatação de Arendt a respeito do conflito entre política e verdade nos coloca no centro do problema de nossa discussão, qual seja: o estabelecimento de uma possível relação entre política e verdade. Ao nos indagarmos sobre a possibilidade de convivência de uma com a outra, nos ocupamos de perguntar se é possível a sobrevivência das relações em um mundo que se pretende crível. Todavia, como garantir a credibilidade dos fatos e, admitir o embuste e, a mentira, como atividade política fundamental e segura? Não estaríamos diante de um paradoxo? na medida em que afirmamos que as relações sociais e, os negócios humanos, carecem da credibilidade da verdade para se perpetuarem e, ao mesmo tempo, admitimos que é da natureza da política a mentira.? Não seria a política, via ação, a garantia das esferas públicas? Assim, nossa inquietação, recai sobre a indagação de como é possível sustentar a mentira como algo plausível na política. Não temos a ingenuidade moralista de negar a mentira, esta se inscreve na prática humana como característica de nossas ações e, portanto, nas ações também políticas, a questão não é negá-la, ou em uma perspectiva deontológica do deve ser, condenar sua prática por não ser universalizável, mas refletir se esta pertence naturalmente à política ou, se é um subterfúgio que se apresenta conforme a conveniência. Ora, se assim for, ou seja, se a mentira não é política, mas uma prática usada por esta, concluiremos que a mentira, sendo exógena a política, não coaduna com ela. Sendo esta, usada, na política, por posturas ardis e inescrupulosas que em nome de seus interesses usam de tal expediente, em nome de um “bem maior”. Bem maior este, que significa, em muitos dos casos, a manutenção dos seus interesses, já que se a verdade viesse à tona, o mundo montado por estes viria abaixo. Isto nos direciona a negação da tese que é da natureza da política a mentira. Destarte, entendemos que essa é utilizada e, precisa ser enfrentada, enquanto dimensão do espaço de conflito, próprio da política, na qual via argumentação, ocupação dos espaços, liberdade de ação e fala se tenha como contraponto a perspectiva de sempre trazer à tona a verdade, ainda que ao custo de desmoronar os interesses de determinados grupos que se instalam no poder.
O totalitarismo e suas posturas inescrupulosas de desmandos de toda ordem, nos servem de exemplo heurístico, de como em nome da manutenção do poder, a mentira pode servir bem a interesses escusos a ponto de toda verdade ser negada, ainda que esta tenha sido fato estabelecido. Distorcê-lo, negá-lo ou variar suas versões são maneiras de  fragilizar a verdade, sobretudo, a verdade factual, que enfrenta um moderno tipo de sofista. Estes, os sofistas modernos, não se preocupam em confundir o pensamento ou estrutura lógica e sim, o fato histórico, todavia, esse  será esclarecido adiante.
 3 Verdade factual e Verdade racional

Passemos agora ao exame da verdade em suas dimensões que nos interessam, a saber: enquanto busca das ideias sublimes e sempiternas e enquanto verdade factual. Para tanto tomaremos o totalitarismo como pano de fundo.
Assim, temos que a situação de um poder centralizador em que as decisões acontecem sempre de cima para baixo sem levarem em conta a pluralidade e a liberdade dos indivíduos, foi a situação experienciada por Arendt na Alemanha nazista. Essa experiência marcou-a, ainda mais quando tomou consciência de Auschwitz em 1943, embora, de início, Hannah Arendt, que já estava fora da Alemanha, não tivesse acreditado no fato. Ela entendia que este não cabia no contexto em questão, em vista de não apresentar, segundo ela, “qualquer objetivo militar” e por “ir de encontro a toda necessidade”. Contudo, o fato era real e verdadeiro e, a partir daí, ficava mais claro para Hannah Arendt o fato de que questões centrais da vida humana e da política estavam em xeque pelo momento histórico que se apresentava. De tal modo, que quando teve que acreditar em Auschwitz, pronunciou-se da seguinte forma: Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós (...) o assassinato sistemático de cadáveres nunca poderia ter acontecido (...) Auschwitz não deveria ter acontecido.[1]
A partir desses acontecimentos Arendt negou-se a reflexões que se constituíssem a partir de princípios últimos, uma vez que esse tipo de posição pode implantar, junto a outros fatores, o autoritarismo. A opinião do outro, nesse sistema, não vale nada, a ponto de a vida ser ceifada por motivos de puro desatino autoritário. Hannah Arendt chega a essa posição não de forma gratuita, mas por ver que a Filosofia, desde os gregos, legou à humanidade uma tradição na qual a verdade poderia ser alcançada via contemplação. Sendo assim, toda essa tradição teria respaldado esses modelos políticos decisionistas, pois quem tem a “verdade” não precisa pôr em debate nenhuma questão. Termos como pluralidade e espaço público passam a ser figuras de retórica, sem nenhum significado contundente, mas apenas denominações da massa conduzida pelos iluminados[2].
É justamente contra isso que Hannah Arendt se posiciona, isto é, contra posturas que negam o espaço público, ou seja, a possibilidade dos indivíduos se articularem e discutirem propostas, fazendo valer o direito de expressão e de ação, sem medo da repressão ceifadora de vidas e liberdades. Haja vista, que o sentido da política é a liberdade (Arendt, 2002, p,38)
Dito isto, temos até aqui duas posições a dos que acham ser possível alcançar a verdade absoluta, neste caso estamos nos referindo ao posicionamento solipsistas que via contemplação acreditavam alcançar o real o que implicaria em um modelo de autoritarismo, na medida em que nega ao outro o direito de manifestar-se já que a verdade foi encontrada. É o modelo racional. Outra posição é o da verdade factual enquanto evento que pode ser distorcida e, até jogada ao esquecimento, caso não seja protegida pela visibilidade e permanência no espaço público.
Assim, questão da verdade se põe primeiramente na disputa entre a verdade racional e a verdade factual. A verdade racional é por excelência contemplativa e chega a ter características solipsistas, na medida em que ela não pode ser comunicada, pois cada indivíduo tem de encontrá-la por si mesmo. É o modelo defendido por Platão, após sua decepção com a pólis. Esse modelo aristocrático que protegeu o filósofo e sua atividade contemplativa da turbulenta e contraditória vida polis negou a pluralidade e a comunicação do que importa, haja vista que para Platão a “verdade não pode ser obtida nem comunicada entre a massa” (ARENDT, 2001b, p, 292).
A grande questão da verdade racional é o que essencialmente a constitui, ou seja, ser sempiterna e trazer em si princípios que podem servir para estabilizar as questões dos homens em seu cotidiano, ou seja, surge de um passeio do filósofo pelo céu das idéias, em busca de princípios últimos e inquestionáveis, isto é, de verdades inabaláveis. Nesse sentido, a verdade racional é alcançada por espíritos especiais, que conseguem atingir um nível de reflexão suficiente para dar conta do mundo pelos princípios antes encontrados em suas reflexões.  Admitir essa postura da verdade racional, contudo, é acolher um caráter seletivo, no qual está determinado quem tem a verdade e a quem todos devem seguir. Talvez tenha sido esse o grande equívoco da tradição filosófica no tocante à política: pensar modelos acabados, paradigmas a serem seguidos, esvaziando a capacidade dos homens da praça[3] de se organizarem por si próprios no processo político, sem a intervenção de uma iluminação que parta de único indivíduo.
A proposta platônica de que o bom governo da polis ocorreria quando os reis se tornassem filósofos ou os filósofos reis é uma posição que traz, potencialmente, traços autoritários, tirânicos, ao se considerarem os riscos, que são enormes. O que teríamos de fato seria um rebanho, crédulo e ingênuo, politicamente anulado pelo controle dessas verdades sublimes, que estariam localizadas em um indivíduo ou em uma casta especial, contrariando a ideia de pluralidade. Nas palavras de Andre Duarte,
Já a partir de Platão, a política deixara de ser concebida como campo de experiência dotado de dignidade própria; mostra-o o fato de que a política tenha sido pensada pelo filósofo, desde Platão, como oriunda “da necessidade que constrange o animal humano a viver em comum com os demais” e não como fundada na “condição humana da pluralidade” e na “capacidade para agir” (apud, DUARTE, 2000 p, 164)

É compreensível que a busca dessa verdade acabada e sublime tenha a pretensão de superar a posição sofista que sacrificava as verdades em nome de suas vitórias passageiras via argumentação, em uma flagrante desvalorização da doxa. Todavia, Esse modelo inaugurado por Platão ao se decepcionar com a polis, põe em descrédito a verdade do mundo (doxa), assim, considerada por nós por se opor a verdade alcançada pretensamente pelos iluminados e, que se encontra fechada, nos círculos dos filósofos e esclarecidos, como pretendeu Platão. Verdade do mundo, por que é comunicável e inteligível a todos que pretendam discuti-la, ao contrário, da incomunicável e hermética verdade sempiterna do céu das ideias, destinada aqueles capazes da contemplação. Em consonância com André Duarte diríamos que,
Sócrates [diferentemente de Platão com sua verdade contemplativa] não queria educar os cidadãos; estava mais interessado em aperfeiçoar-lhes as doxai, que constituíam a vida política em que ele tomava parte. (DUARTE, 2000, p, 171)

Assumir, qualquer modelo que vise uma verdade absoluta e hermética, alcançada por poucos, não é a melhor saída, haja vista que nossa época nos legou outro modelo de sofista que não se satisfaz em anular argumentos, mas empreende forças para negar fatos comprometendo aquilo que é o evento histórico, situação primordial da verdade factual, de tal modo que a luta hoje contra os sofistas continua, só que os atuais estão a usar outros alvos; de qualquer forma, utilizar modelos absolutos de uma verdade pessoal, unilateral, não é a saída. Os sofistas da atualidade se diferenciam dos antigos de forma, simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento às custas da verdade, enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura mesmo que às custas da realidade. (ARENDT. 1989, p. 29). Passemos agora ao exame da verdade factual.
A verdade factual é a verdade da vida, ou seja, a verdade que corresponde à atuação do homem no espaço público. Esta encerra como maior marca a ação, e somente ocorre quando aos indivíduos é possibilitado o direito de fala e de ação, embora muitas vezes as situações sucedam para negar isto em favor de um grupo ou indivíduo que pretenda controle total; de qualquer forma, a ação e sua ocupação histórica a demarcam diferenciando-a de qualquer verdade contemplativa.
Ainda é de se observar que, nessa comparação direta entre a verdade factual e a verdade racional, evidencia-se a fragilidade da verdade factual, não uma fragilidade qualquer, que lhe possa trazer um abalo circunstancial, mas uma fragilidade que pode eliminá-la a ponto de a mesma desaparecer (Cf. ARENDT, 2001b, p. 287), visto que os acontecimentos históricos, isto é, aquilo que é da ordem dos assuntos humanos é potencialmente mais frágil do que as teorias elaboradas pela verdade racional.
O uso do poder nesse contexto é central, na medida em que fatos podem ser distorcidos e manipulados em favor de quem detém o poder. Sendo assim, podemos tranqüilamente afirmar que a verdade factual é, sobretudo, uma verdade política. É política porque se insere no âmbito dos negócios humanos. É política porque é presente na vida ativa e, como fato, ela é passível de mentira, de engano ardiloso para a manutenção do poder, ainda que no plano dos controles e manipulações.
Assim, temos que a verdade factual é contrariada pela mentira, na medida em que esta é histórica. O contrário da verdade factual não é o erro, mas a mentira. A esse respeito escreve Arendt: A falsidade deliberada, a mentira cabal, somente entra em cena no domínio das afirmações factuais (ARENDT,1989, p. 288).
A verdade factual enfrenta, em sua fragilidade a acusação de não passar de uma ilusão, e aqui aparecem pelo menos duas implicações. A primeira é o poder em vigor sempre há de camuflar ou distorcer ou, pelo menos, vai tentar realizar isso, pondo a verdade factual no âmbito da ilusão, como algo irreal, à medida que isso o protege, pois tira o caráter da verdade factual do âmbito do evento e o situa no contexto da dúvida sem maiores evidências. Ferido por essa distorção, o espaço público corre o risco de ser negado e desembocar em puro autoritarismo. Aí reside a segunda implicação.
                O que nos espanta nessa relação tensa e frágil entre política e verdade é que a mesma sendo atual e, corriqueira em nossa época, não seja considerada como algo perigoso e daninho a vida pública e a memória dos eventos e fatos. Impressiona a defesa da necessidade da mentira como instrumento do poder desde a micro estrutura de uma associação aos negócios de Estado, naturalizou-se o engodo e a dissimulação. A questão agrava-se quando percebemos que apesar dos recursos eletrônicos capazes de registrar um massacre e, fazer as imagens correr o mundo, continuamos a conviver com a mentira, a negação e a distorção – para isto basta lembrarmos-nos das chamadas revoltas do mundo Árabe que teve inicio na Tunísia e Egito e que serviram de exemplos de como, apesar dos fatos os governos tentavam manipular as informações distorcendo os eventos, fato levado as últimas conseqüências pelo governo Sírio de Bachar Al- Assas, todavia, graças a publicização e mobilização os ditadores Bem Ali e Hosni Mubarack caíram.
            Por fim, no mais contundente exemplo histórico de manipulação da verdade temos o totalitarismo, que em sua estrutura, fosse de esquerda ou de direita isto era facilmente observado, na medida em que na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin, era mais perigoso falar de campos de concentração e extermínio, o que não era nenhum segredo, do que emitir concepções acerca do antissemitismo. (ARENDT, 2001b, p,293)

Considerações finais

            Ao levantarmos a questão da relação política e verdade temos a pretensão de trazer à baila o debate em torno de duas questões centrais, no que diz respeito à verdade. Primeiro, esclarecer que a postura de se ter uma verdade sublime e última sobre a realidade como posse de algum iluminado ou grupo de iluminados desemboca em autoritarismo. Segundo, que a verdade factual carece da cena pública para garantir sua existência e contundência dos fatos, não podendo ser omitida ou reclusa aos interesses de qualquer poder, sob pena de distorção ou desaparecimento.
            Assim, nosso entendimento do assunto emerge como uma provocação a permanência plena dos fatos no espaço público pra que não pereçam diante de posições extremadas que buscam negar os eventos, tais como as negações do governo do Irã sobre o Holocausto, “O pretexto (holocausto) para a criação do regime sionista (como Ahmadinejad se refere a Israel) é falso. É uma mentira baseada em uma alegação mítica e não comprovada. Confrontar o regime sionista é um dever nacional e religioso”, palavras de Ahmadinejad que objetivam apenas uma coisa; minar a credibilidade da verdade factual quiçá sua existência.
            Por fim, tornamos claro que não pretendemos uma discussão aprofundada dos eventos históricos aqui citados, ao contrário, nosso objetivo é a análise da verdade enquanto fenômeno frágil e politicamente importante para a história dos homens e do desenvolvimento de suas teias de relações. Nosso apoio no pensamento de Arendt visa garantir a circulação de uma compreensão de verdade que comungamos na medida em que entendemos ser necessária a preservação da memória via espaço público.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, Trad. Roberto Raposo, Ed. Cia da Letras. São Paulo, 1989

_______________.A condição humana, Trad. Roberto Raposo, Ed, Forense universitária,  Rio de Janeiro, 2001a

_______________. Entre o passado e o futuro, Ed. Perspectiva, São Paulo,2001b

_______________.  O que é a Política. Trad. Reinaldo Guarany. Ed, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2002

________________. A promessa da política, Trad. Pedro Jorgensen, Ed. Difel, Rio de Janeiro,2010.

AGUIAR, Odilio Alves. Filosofia e Política no Pensamento de Hannah Arendt, Ed. UFC, Fortaleza, 2001

DUARTE, André, Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. In: Transpondo Abismos: Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política. Org. Adriano Correia, et, al. Forense universitária. Rio de Janeiro.2002

______________, O Pensamento à Sombra da Ruptura – política e filosofia em Hannah Arendt. Paz e terra, São Paulo, 2000

SILVA, Ricardo G. de Araújo. A categoria da ação na Abordagem de Hannah Arendt, In: Ciências Humanas em debate Ed. UFRPE, Recife, 2011

Projeto de lei comissão da verdade.In:http://www.camara.gov.br/sileg/integras/771442.pdf,   Acessado em 22/05/2012



[1] Entrevista com Günther Gaus-Levy, televisionada em 28 de outubro de 1964, no segundo canal de televisão Alemã. A tradução francesa desse texto, realizada por Sylvie Courtine-Denamy, também foi publicada, em 1980, no nº 6 da revista Esprit (p. 19-40)
[2] Na alegoria da caverna, o indivíduo (o filósofo) que sai da caverna e encontra a luz (a verdade) retorna, então, à mesma para propagá-la aos outros sem levar em conta a opinião dos mesmos.
[3] Referência a ágora, local de debate político na sociedade grega da Antiguidade.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Educação e Responsabilidade pelo mundo

Prof.Me. Ricardo George
Quando optamos por tratar da educação na esteira do pensamento de Hannah Arendt, o fizemos por entender que as questões que assolam esta, se encontram fora dela, por serem de ordem política. Constatação que nos intriga, conduzindo-nos a essa problemática. Cabe ainda esclarecer, que embora concordemos com Arendt a respeito da educação ser um espaço pré-político (Cf, ARENDT, 2001, p. 128), entendemos que esta guarda forte diálogo com a política, na medida em que os agentes da intenção pedagógica, isto é, os mestres, ocupam o espaço educacional a partir de uma compreensão de mundo, de sociedade e de homem, seja esta compreensão consciente ou não.

A crise posta é uma crise política, que atinge a educação. Assim, a crise na educação não é genuinamente sua, mas um fenômeno exógeno que a atinge. Esta crise se configura em duas frentes de entendimento, a nosso ver. Primeiro encontrar respostas novas aos problemas postos. Segundo Arendt (2001, p. 223) uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com pré-conceitos”. Esta precisa ser tratada com novas abordagens, sob pena de agudizar seus efeitos e, sobretudo, deixar passar o momento da reflexão. Segundo, viabilizar ação para superação da crise a partir das respostas novas e das ações que enfrentam a realidade objetiva constituída. Assim:
 A realidade social, objetiva, não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso.  Se os homens são produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens” (FREIRE. 2005, p, 41)

Ao tratarmos de crise cabe destacar a crise da autoridade ou pelo menos sua confusão conceitual que também reside fora dela, esta se encontra no engodo político fundamental, qual seja, não responsabilizar-se pelo mundo. Ao agir assim, negligenciando o mundo, a política ganha relevância secundária e aparece como serva de outros saberes, como exemplo podemos citar a sociedade de produção e consumo regulada pela economia, que ganha primazia em relação à política. Esta visa à transformação da natureza e das relações humanas em produto. Neste contexto, tudo se inscreve na lógica do consumo, na perspectiva do homem laborans. A política se for possível nessa perspectiva, é pra dar sustentação à lógica da produção e do consumo. De modo, que a organização social entendida nessa lógica conduz a política a uma crise de identidade, seu papel fica reduzido e confuso. Tal situação se estende as veias da sociedade chegando à educação, que já não ver com clareza qual seu papel. Emerge aqui a crise do senso comum, Isto é, valores e sentidos antes compartilhados se esfacelam e já não são reconhecidos no corpo social, de modo que não partilhando sentido e valores estabelecidos pela família e pela escola, estes perdem relevância, entre eles a autoridade. Assim, compreendemos que o desaparecimento do sendo comum [enquanto sentido compartilhado] nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Grifo nosso (ARENDT, 2001, p, 227)
Todavia voltando a questão da redução da política a atividades da produção Arendt (2002b, p.15) elabora uma distinção entre as necessidades humanas básicas. Apresenta as que estão presas ao ciclo vital e se encontram em predominância, a liberdade – o trabalho – e àquelas que se voltam para o mundo e seu cuidado – a fabricação, a ação e o pensamento.  Essa distinção elaborada por Arendt nos esclarece o fenômeno vivido pela modernidade que tomou a dimensão de cuidado com a vida, enquanto sobrevivência orgânica e, lançou esta perspectiva sobre todas as outras esferas do existir. Conforme Almeida (2009 p. 18) “no mundo moderno, os processos vitais ameaçam reduzir-nos a meros consumidores e limitar-nos a nosso aspecto de animal laborans, de modo que sobram cada vez menos espaços para outros princípios e atividades,” Explicando de outra maneira, asseveramos que a produção e o consumo, na sua origem, restritas aos processos biológicos, ganharam na modernidade uma lupa de aumento e, não só passaram a ser vista como necessidade, como se tornaram uma prática. Assim, o hábito da produção e consumo de tudo o quanto fosse possível, desencadeou um sentimento de insatisfação compulsivo, que em nosso entender chegou a atingir os valores. Assim:

Esse ciclo de produção e consumo, originalmente ligado aos processos biológicos, na modernidade extrapola cada vez mais satisfação das necessidades biológicas e se estende a outras dimensões. Não consumimos apenas alimentos, mas estilos de vida, produtos “culturais”, emoções, imagens. Contudo, embora o processo de produção e consumo seja cada vez mais exacerbado, a exigência imperiosa que lhe é inerente continua sendo a mesma: o suprimento das carências vitais sejam elas biológicas ou não. O ser humano enquanto ser vivo submetido às necessidades sempre prementes e obrigado a trabalhar para atendê-las é chamado por Arendt de animal laborans. (ALMEIDA, 2009,p.16)

            O animal laborans, não se ocupa de responder a nenhuma indagação que se inscreva fora da relação de consumo. De modo que o cuidado com o mundo não lhe interessa, por sua constituição não ser política, ainda que o contexto seja de crise.
A política está em crise. Assim, também, o papel da educação se encontra em crise, por que está em crise, a tríade fundamental, a saber: a fundação, a tradição e a autoridade estas, quando no bojo da crise, não são por si destrutivas. Contudo, potencializam o hiato entre passado e as realidades presentes dificultando o encaminhamento ao futuro. Rompendo essa continuidade o passado fica fragmentado, exigindo do presente novas formas de entendimento e, novo método de enfrentamento da realidade hodierna. Assim:
Nossa experiência com a tradição vive, segundo Arendt, uma situação lacunar entre estas duas ordens de tempo (passado e futuro) onde, retomando Tocquivelle, o passado não iluminando mais o presente, somos obrigados a avançar no escuro. (BRAYNER, 2008, P. 21)

Uma das conclusões que Arendt chega é que a Crise na educação frente às atrocidades histórico-sociais, sempre parecer ser menor. (Arendt, 2001, p. 222) A nosso ver, essa constatação permanece até os dias atuais, observamos isso tanto na crise da educação, como na reduzida importância do problema da educação em relação a outros problemas. O que ocorre no interior da educação sempre é legado a um segundo plano, como se esta pudesse sempre esperar o melhor momento de resolver, o que nunca chega. Se a crise desponta como oportunidade de mudança e de reflexão, a educação nunca se apropria dessa possibilidade na medida em que não lhes são abertas oportunidades. Assim, a impressão que vigora é que sempre tem problemas e crises mais urgentes e relevantes em outras áreas. Consoante Arendt (2001, p.222) “é de fato tentador considerá-la [a educação] como um fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século.Grifo nosso
O que não se percebe, ou passa a vista sem um exame mais acurado, é que a crise na educação não é dela, como anteriormente destacamos, e sim política e generalizada. Por isso, o título tratar da crise na educação e, não da educação. O entendimento desse ponto torna-se relevante na medida em que a pretensão de Arendt, anunciada logo no inicio do texto (Cf. Arendt, 2001, p, 221), visa um problema maior. Arendt chama atenção para a política, enquanto ocupação do espaço público, que foi perdido pela tradição ao negar autoridade.  Há, portanto um fio condutor perdido pela tradição que precisa ser resgatado. Nesse sentido, precisamos resgatar a educação naquilo que a movimenta e significa. Segundo Arendt (2001, p, 223) “A essência da educação é a natalidade, o fato de que seres humanos nascem para o mundo”. Nascer para o mundo tem significados fundamentais, sejam eles: Integrar a comunidade de falantes e agentes; Perpetuar a vida e o mundo público; Garantir a renovação das instituições, entre outras. De modo que
Essa crise está relacionada às características básicas da sociedade moderna. (...) Os pressupostos do mundo moderno têm seus efeitos também na pedagogia e nas práticas educacionais, de modo que a crise mais ampla ganha uma expressão específica nesse âmbito. As questões e os problemas assim provocados, porém, não dizem respeito apenas aos pais e educadores, mas, em princípio, são da preocupação de todos, devido ao lugar fundamental que a educação ocupa no mundo. É por meio da educação que cada comunidade introduz as novas gerações  em seu modo específico de existência.(ALMEIDA, 2009, p.14)

Dito isto nos parece pertinente a constatação de que a educação tem como tarefa primordial, introduzir a crianças no mundo, contudo, cabe destacar a peculiaridade desse ato, haja vista que esse mundo antecede as crianças e continuará depois deles. De modo que viver implica se inserir em um espaço-tempo determinado e constituído em que as histórias de cada um se desenrola. Segundo, Almeida( 2009, p. 15) Essa existência “se insere numa história mais abrangente, na qual as muitas histórias  singulares se entrelaçam, devido ao aparecimento constante de novos atores, num tecido em contínua transformação”.Assim, nada nos autoriza no contexto de uma crise ou fora dele pensar a educação apenas como preparação para um mundo novo, isto pode até funcionar como uma dimensão da educação mas, não como seu fim absoluto, sob pena de estarmos ferindo a perspectiva desta enquanto fenômeno filiado a natalidade e, a constituição do novo. Pois,
Pertence à própria natureza, da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo. (Arendt, 2001, p. 226)...

 obs: texto na integra em breve - na seção ao lado

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Governo CID e a Porrada na Educação?

Me apropriei do texto do professor Douglas, em vista de sua contundente análise pra otimizar a divulgação do famigerado governo do Ceará que trata a educação com "Amor"                                                                
                                                               Por Douglas de Paula (Professor do Curso de Letras da UECE)

Creio que o Pequeno Príncipe Cid Gomes está deixando de ser um personagem infantil para se tornar gente grande, mas, infelizmente, gente grande que não conhece sua própria medida: Cid está se tornando um personagem trágico, uma espécie de Édipo de Sobral. No lugar das pitonisas do Oráculo de Delfos, ele consulta o irmão Ciro Tirésias, um cego que pensa que tudo vê, mas que enxerga somente o próprio umbigo. Como todo personagem trágico, Cid Gomes está cometendo um ato desmedido ( hybris ), o que irá atrair para si inevitavelmente um erro, gerado por suas próprias ações. Todo personagem trágico erra porque se aferra obstinadamente a seu próprio ponto de vista e não consegue ouvir os outros. Depois da truculência do Batalhão de Choque na Assembleia Legislativa contra os professores, a sociedade civil do Ceará demonstrou, através da imprensa e da Internet, sua solidariedade aos professores, mas isso em nada abalou os ouvidos do Príncipe (agora estou em dúvida: Cid está mais para o Príncipe de Maquiavel ou para o Pequeno Príncipe de Exupéry?).

> O Dr. Mourão, em artigo de seu Blog, é que usou a palavra certa, sem deslizes: o que houve na Assembleia foi AGRESSÃO contra os professores. Enquanto os senhores de-putados se preocupavam com a destruição do “patrimônio público”, os professores eram agredidos pelo Batalhão de Choque, sem ter acesso às galerias da “Casa do Povo”. E a Educação, às portas do Plenário, bem próxima ao “quadrilátero de segurança” do Governa-dor, era agredida em seus pressupostos básicos. O professor precisa de condições materiais para viver. Ninguém trabalha por amor. Pensar que professor trabalha por amor reflete o amadorismo de um Pequeno Príncipe metido a Governador ou a ruptura da máscara ideológica do Príncipe maquiavélico.
> Caiu a máscara de Cid? Creio que não. Não dá para esperar mais do irmão de Ciro Gomes. Dá para esperar menos. Menos respeito com os servidores, menos salários para os professores, menos democracia em seu mandato. De mais mesmo só seu orgulho e sua obstinação, pontos centrais de sua hybris trágica e do começo de sua queda. Seu irmão já experimentou tal queda, pois nunca terminou um mandato, foi o deputado federal que mais faltou ao Congresso e atualmente vagueia no limbo da política, assessorando (muito mal) o irmão.
>
> Não sei se Freud explica, mas, inconscientemente, talvez um irmão sonhe com a queda do outro. A disputa entre irmãos é comum na história humana, e René Girard explica bem direitinho essa rivalidade mimética. Um irmão acaba refletindo o outro, tornando-se o outro. Até os nomes contribuem para esse mimetismo: Ciro/Cid, Cid/Ciro. E qual o erro trágico do Pequeno Príncipe?
>
> Resposta: não querer conversa. Cid diz: “Só negocio com o fim da greve”, e estamos conversados. Édipo agiu assim. Antígona também. Creonte idem. Todos os personagens trágicos se julgam maiores do que são e acham que não precisam prestar contas a ninguém. Para eles, dar o braço a torcer é sinônimo de fraqueza. O personagem trágico, como diz Jean-Pierre Vernant, é pego pelas próprias palavras. Não admira que Cid tenha disparado tantas frases esdrúxulas nas últimas semanas. Ele não consegue ficar calado, porque não admite que alguém se lhe oponha resistência. Afinal, foi Ciro que disse, numa greve de médicos, que médico era como sal: branco, barato e se acha em qualquer esquina . Nada há de surpreendente que Cid, o “genérico” de Ciro, solte aos quatro ventos que professor deve trabalhar por amor .
>
> É justamente aí que Cid/Ciro ou Ciro/Cid erram: tornam-se seres obcecados, obstinados. Somente a obstinação não reconhece que tudo flui, e a única coisa permanente do mundo são as mudanças das coisas. Parece que o Governador nem percebeu que, na Internet, seu nome está indelevelmente manchado. O sangue dos professores, que correu na Assembleia Legislativa, suja o assoalho muito limpinho do Palácio da Abolição, numa metonímia direta entre governo/Governador . O único modo de limpar essa sujeira é respeitando os professores, pagando-lhes um salário digno e, o mais importante, obedecendo ao que manda o STF, que concede ao professor 1/3 de sua Carga Horária para preparação de aulas.
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> Se não estava nos planos do Governo aprovar um Plano de Carreira para os professores e, como disse o próprio Governador, por ele, nem Carreira existiria , que ele agora aproveite o momento para mudar de planos. Falta dinheiro? Duvido muito, pois parece que não falta para os escândalos dos banheiros ou do Cartão Único, ou para o famigerado Aquário de Fortaleza. Mas tudo bem: aceitemos a conversa fiada: falta dinheiro. Mas diz a Lei do Fundeb que, se o Estado não tiver condições para arcar com as despesas do Piso, a Federação entrará com a contraparte. Basta “apenas” que o Estado abra suas contas e prove que já investiu o máximo do orçamento em Educação. Onde está o problema, meu povo? Na falta de dinheiro, na sobra de insensatez, na desculpa esfarrapada, na maldade pura e simples ou num projeto político para deixar a Educação Pública sempre precária? Talvez um “malte” de tudo isso junto. Se o Governador não encontrar uma saída madura, será o início do fim de seu governo. Talvez de seu Principado. Talvez do Principado de todos os Ferreira Gomes.
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> Lembrete ao Pequeno Príncipe, parodiando Exupéry: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que tu agrides”.
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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

UMA QUESTÃO DE CIÊNCIA, DIREITOS HUMANOS E BIOÉTICA

Obama pede desculpas por experiência com sífilis na Guatemala
O presidente Barack Obama expressou seu profundo pesar a Álvaro Colon, presidente da Guatemala, por um estudo realizado na década de 1940 no qual 696 guatemaltecos foram deliberadamente infectados com sífilis. A Secretária de Estado americana, Hillary Clinton, e a secretária de saúde e serviços humanos, Kathleen Sebelius, emitiram uma declaração pública conjunta afirmando que o estudo foi “claramente antiético”. Os participantes foram infectados com sífilis para verificar se a penicilina poderia ser utilizada imediatamente após relações sexuais para evitar a infecção. Em sua declaração, Hillary e Kathleen afirmaram: “Apesar de esse evento ter ocorrido há mais de 64 anos, é vergonhoso que uma pesquisa tão reprovável tenha ocorrido sob o pretexto de melhoria da saúde pública. Sentimos muitíssimo e pedimos perdão a todos os indivíduos afetados por tais práticas abomináveis de pesquisa”. Tanto as secretárias quanto o presidente afirmaram que as atuais regulamentações norte-americanas sobre pesquisa médica proíbem tais práticas. O estudo na Guatemala foi descoberto por Susan Reverby, historiadora médica no Wellesley College, em Massachusetts, e autora de dois livros sobre o experimento Tuskegee nos Estados Unidos. Nesse experimento, funcionários da saúde pública realizaram o seguimento de fazendeiros negros pobres com sífilis de 1932 a 1972 no Alabama, porém não ofereceram tratamento quando a penicilina tornou-se disponível, a partir da década de 1940. Susan estava pesquisando a vida de John Cutler, envolvido no experimento Tuskegee. Ela encontrou seus textos no arquivo da Universidade de Pittsburgh, onde ele se tornou mais tarde um professor respeitado. “Os únicos textos que Cutler deixou para trás eram sobre a Guatemala”, disse ela ao BMJ. O Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos estava trabalhando para melhorar os serviços de saúde pública na Guatemala. O estudo foi financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde, pelo Pan American Health Sanitary Bureau (que se tornou a Organização Pan-americana de Saúde) e pelo governo da Guatemala. Diferentemente do experimento Tuskegee, os participantes do estudo na Guatemala foram deliberadamente infectados com sífilis. O estudo, realizado de 1946 a 1948, tinha a esperança de descobrir se a nova droga, a penicilina, poderia ser usada imediatamente após relações sexuais para evitar a infecção por várias doenças sexualmente transmissíveis, em especial a sífilis.Os participantes não foram informados do propósito do estudo, nem forneceram consentimento livre e informado. Foram incluídos prostitutas, soldados, prisioneiros e doentes mentais. Em seu artigo, que será publicado no Journal of Policy History, Susan relata que as prostitutas foram utilizadas para transmitir a doença aos prisioneiros durante visitas permitidas.Mais tarde, foram feitas tentativas de infectar os participantes com a bactéria da sífilis colocada sobre o pênis dos homens ou sobre o antebraço e o rosto ligeiramente escarificados, e em alguns casos através de punções na coluna. Os participantes receberam injeções de penicilina para tentar evitar a infecção. .[ fonte: Janice Hopkins . http://www.bmjbrasil.com.br/ - acesso em 31-08-2011]
A notícia a cima chama atenção pra o que estamos fazendo com a Ciência e a tecnologia. Não podemos em nome do conhecimento, do “progresso” ou do lucro, sacrificar nossos semelhantes ou  a natureza. Como nos conclama Humberto Maturana, é preciso reconhecer o outro como legítimo outro (MATURANA, 2002. p. 23). O experimento realizado com os guatemaltecos expressa a instrumentalização da razão e do saber técnico, sem considerar seus efeitos políticos, bioéticos e vitais. Nenhuma ciência pode se considerar a cima do bem estar humano, toda e qualquer prática científica deve considerar o estabelecido na declaração de Nuremberg, (1946), a saber:

1. O consentimento voluntário do paciente humano é absolutamente necessário

2. O experimento deve visar resultados saudáveis à sociedade, que não tenha outros métodos ou meios de estudo, e deve ser feito com toda técnica e com absoluta necessidade.

3. O experimento deve ser baseado em resultados de experiência em animais e com o conhecimento de História natural da doença ou outro problema em estudo que justifique o experimento por seus resultados antecipados.

4. O experimento deve ser conduzido de forma tal que evite todo sofrimento ou injúria física ou mental.

5. Não se deve fazer experimento algum quando se tenha a priori razão para acreditar que possa resultar em morte ou desabilidade, exceto quando se trata de médicos.

6. O grau do risco a ser corrido pelo paciente não deve exceder a importância do problema a ser resolvido pelo experimento.

7. Todos os cuidados e precauções devem ser tomados para evitar a mais remota condição de injúria, morte ou incapacidade.

8. O experimento deve ser feito somente por pessoas cientificamente qualificadas.

9. Durante o experimento o ser humano deve ser mantido em condições de poder suspendê-lo.

10. O cientista deve suspender o experimento a qualquer tempo que o julgar capaz de incapacitar o paciente, lesá-lo ou matá-lo.



[recomendamos a leitura do artigo: “Bioética e Direitos Humanos” que se encontra em pdf ao lado direito do blog]

Referência Bibliográfica

MATURANA. Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Trad. José Fernandes Campos Forte. 3ª edição. Ed. UFMG. Belo Horizonte – MG. 2002.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

OMNILATERALIDADE ?


# tendo em vista dúvidas sobre o nome do nosso espaço virtual, fizemos uso da explicação do professor Justino, que é muito esclarecedora.
Por Justino de Sousa Junior

O conceito de omnilateralidade é de grande importância para a reflexão em torno do problema da educação em Marx. Ele se refere a uma formação humana oposta à formação unilateral provocada pelo trabalho alienado, pela divisão social do trabalho, pela reificação, pelas relações burguesas estranhadas, enfim.

Esse conceito não foi precisamente definido por Marx, todavia, em sua obra há suficientes indicações para que seja compreendido como uma ruptura ampla e radical com o homem limitado da sociedade capitalista.

A unilateralidade burguesa se revela de diversas formas: de início a partir da própria separação em classes sociais antagônicas, base segundo a qual se desenvolvem modos diferentes de apropriação e explicação do real; revela-se ainda por meio do desenvolvimento dos indivíduos em direções específicas; pela especialização da formação; pelo quase exclusivo desenvolvimento no plano intelectual ou no plano manual; pela internalização de valores burgueses relacionados à competitividade, ao individualismo, egoísmo, etc. Mas, acima de tudo, a unilateralidade burguesa se revela nas mais diversas formas de limitação decorrentes do submetimento do conjunto da sociedade à dinâmica do sociometabolismo do capital. Nos Manuscritos de 1844, quando analisa a propriedade privada como aquilo em que se condensa a criação do trabalho humano alienado, e sua contribuição decisiva para a definição de uma base social em que se impõe a unilateralidade humana, Marx afirma:

La propiedadad privada nos há vuelto tan estúpidos y unilaterales, que un objeto solo es nuestro cuando lo tenemos y, por tanto, cuando existe para nosotros como capital o cunado lo poseemos directamente, cuando lo comemos, lo bebemos, lo vestimos, habitamos en él, etc., en una palabra, cuando lo usamos (Marx e Engels, 1987, p. 620).
A esse dado fundamental da unilateralidade humana corresponde o fato de que a dinâmica da vida social se submete a imperativos não determinados pelos indivíduos associados segundo um planejamento que observe acima de tudo as necessidades humanas mesmas. A dinâmica da vida social é determinada pelo movimento de valorização do capital, que submete os indivíduos, em geral, a agentes da sua ‘vontade’.
Embora não haja em Marx uma definição precisa do conceito de omnilateralidade, é verdade que o autor a ela se refere sempre como a ruptura com o homem limitado da sociedade capitalista. Essa ruptura deve ser ampla e radical, isto é, deve atingir uma gama muito variada de aspectos da formação do ser social, portanto, com expressões nos campos da moral, da ética, do fazer prático, da criação intelectual, artística, da afetividade, da sensibilidade, da emoção, etc. Essa ruptura não implica, todavia, a compreensão de uma formação de indivíduos geniais, mas, antes, de homens que se afirmam historicamente, que se reconhecem mutuamente em sua liberdade e submetem as relações sociais a um controle coletivo, que superam a separação entre trabalho manual e intelectual e, especialmente, superam a mesquinhez, o individualismo e os preconceitos da vida social burguesa.
O homem omnilateral não se define pelo que sabe, domina, gosta, conhece, muito menos pelo que possui, mas pela sua ampla abertura e disponibilidade para saber, dominar, gostar, conhecer coisas, pessoas, enfim, realidades – as mais diversas. O homem omnilateral é aquele que se define não propriamente pela riqueza do que o preenche, mas pela riqueza do que lhe falta e se torna absolutamente indispensável e imprescindível para o seu ser: a realidade exterior, natural e social criada pelo trabalho humano como manifestação humana livre.
Nos Manuscritos de 1844, especialmente, aparecem elementos fundamentais para a compreensão do conceito de omnilateralidade. É com base neles que se pode afirmar que o homem omnilateral equivale ao homem rico que Marx desenvolve no citado texto: “El hombre rico es al mismo tiempo, el hombre necesitado de uma totalidad de manifestaciones de vida humanas” (Marx e Engels, 1987, p. 624, grifos do autor). Aqui Marx discute a riqueza humana identificando-a à capacidade de desenvolver demandas humanas, isto é, a riqueza aqui diz respeito à carência de manifestações humanas não-fetichizadas: um homem é tanto mais rico quanto mais demanda manifestações humanas e “la más grande de las riquezas, (es) el otro hombre” (Marx e Engels, 1987, p. 624, grifo do autor).
O homem rico se define pela carência de um conjunto variado de manifestações humanas que o plenifiquem, nas quais se reconheça e pelas quais se constitui. Necessidades não determinadas pelo caráter de mercadoria, segundo a dialética de Marx, só poderiam nascer e serem amplamente satisfeitas em relações não-burguesas, em relações que ultrapassem o sistema de relações do capital.
Segundo o exposto, a omnilateralidade tem como condição a superação do capital ou, de acordo com os Manuscritos, da alienação e da propriedade privada:
La superación de la propiedad privada representa, por tanto, la plena emancipación de todos los sentidos y cualidades del hombre. (...) [Por sua vez], el hombre sólo deja de perderse en su objeto cuando éste se convierte para él en objeto humano o en hombre objetivo (Marx e Engels, 1987, p. 621, grifo do autor).
É na sua ação sobre o mundo que o homem se afirma como tal, no entanto, ele precisa atuar como um todo sobre o real, com todas as suas faculdades humanas, todo seu potencial e não como ser fragmentado, pois só assim ele poderá se encontrar objetivado como ser total diante de si mesmo.
Nos Grundrisse, mais uma vez, Marx apresenta elementos para a compreensão da omnilateralidade como riqueza do desenvolvimento humano amplo e livre, nos seguintes termos:
Ahora bien, qué es, in fact, la riqueza despojada de su estrecha forma burguesa, sino la universalidad, impulsionada por el intercambio universal de las necesidades, las capacidades, los goces, las fuerzas productivas, etc., de los individuos? Qué es sino el desarrollo total del dominio del hombre sobre las fuerzas naturales, tanto las de la naturaleza misma como las de la propia naturaleza humana; la absoluta potenciación [de su capacidad] por obra del esfuerzo de sus dotes creadoras, sin más premisa que el desarrollo histórico precedente, que lleva a convertir en fin en si esta totalidad del desarrollo, es decir, el desarrollo de todas las fuerzas humanas en cuanto tales, sin medirlo por uma pauta preestabelecida, y en que el hombre no se reproducirá como algo unilateral, sino como una totalidad; en que no tratará de seguir siendo lo que ya es o ha sido, sino que se incorporará al movimiento absoluto del devenir? (Marx, 1985, p. 345-346)
Nesse trecho evidencia-se a contradição entre a sociabilidade estranhada, com suas restrições e unilateralidades de um lado, e a universalidade, a totalidade do desenvolvimento humano e o devenir, de outro. Marx associa o que se pode chamar de omnilateralidade, que se opõe à unilateralidade burguesa, ao movimento do devenir, das novas relações emancipadas. Aqui aparece mais uma vez com clareza a idéia da universalidade, termo com o qual o conceito de omnilateralidade estabelece uma relação de correspondência.

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Omnilateralidade & politecnia

O conceito de omnilateralidade guarda relação com outro conceito marxiano importante para o problema da formação humana que é o de politecnia. O elemento fundamental de distinção entre os dois conceitos é justamente o fato de que a politecnia representa uma proposta de formação aplicável no âmbito das relações burguesas, articulada ao próprio momento do trabalho abstrato, ao passo que a omnilateralidade apenas se faz possível no conjunto de novas relações, no ‘reino da liberdade’. Como lembra Nogueira (1990, p. 129):



Para Marx, a educação politécnica não é utopia da criação de um indivíduo ideal, desenvolvido em todas as suas dimensões. Mas é antes, dialeticamente e ao mesmo tempo, uma virtualidade posta pelo desenvolvimento da produção capitalista e um dos fatores em jogo na luta política dos trabalhadores contra a divisão capitalista do trabalho...

A noção de politecnia, antes da formulação marxiana, surge nas experiências teóricas e práticas dos socialistas utópicos. Por sua vez, a noção de politecnia enquanto formação polivalente - ou pluriprofissional modo como Manacorda (1990) e Nosella (2006) nomeiam a noção de politecnia defendida pelo capital - em grande medida, é uma realidade imposta pelo próprio desenvolvimento da grande indústria. Em Marx, todavia, a proposta de politecnia adquire novos relevos. Para esse autor, ela era, acima de tudo, uma forma de se confrontar com a formação unilateral e os malefícios da divisão do trabalho capitalista. Ela representava a reunião de diversos aspectos que, uma vez associados, significariam uma formação mais elevada dos filhos dos trabalhadores em relação às demais classes sociais. Assim, a experiência do trabalho (em atividades diversas), associada aos estudos dos fundamentos teóricos do trabalho e à formação escolar, e ainda aos exercícios físicos e militares, representariam um salto na formação dos trabalhadores, pois imporiam fortes elementos contrários à empobrecedora formação decorrente das condições de trabalho capitalistas.

Os dois conceitos, no entanto, apesar de apresentarem esse traço distintivo, se complementam. Na verdade, não há uma dissociação do tipo: a politecnia se realiza no âmbito das relações burguesas ao passo que a omnilateralidade apenas se realiza com a superação destas relações. Ambas são realizações da práxis revolucionária que em graus diferentes se manifestam em diferentes estágios históricos da vida social. A omnilateralidade, por exemplo, é uma busca da práxis revolucionária no presente, desde sempre, embora sua realização plena apenas seja possível com a superação das determinações históricas da sociedade do capital. Elementos de ruptura para com as unilateralidades burguesas são exercitados cotidianamente por meio de relações diferenciadas com a natureza, com a propriedade, com o outro, com as crianças, com as artes, com o saber, por intermédio de relações éticas de novo tipo, etc. Porém, de maneira plena, como ruptura ampla e radical, a omnilateralidade só se realiza como práxis social, coletiva e livre, pois depende da universalização das relações não-alienadas entre os indivíduos, no intercâmbio com a natureza e no intercâmbio social em geral.

Já a politecnia é claramente uma proposta que toma como ponto de partida a contribuição dos socialistas utópicos e a observação do próprio movimento material da produção capitalista, que avança com a grande indústria.

A politecnia é proposta para se realizar no presente da opressão a que estão submetidos os trabalhadores com o propósito de a eles responder. A politecnia não almeja alcançar a formação plena do homem livre, mas a formação técnica e política, prática e teórica dos trabalhadores no sentido de elevá-los na busca da sua autotransformação em classe-para-si. Portanto, a politecnia não tem como condição para sua realização a ruptura ou superação das determinações históricas da sociedade do capital.

Entre politecnia e omnilateralidade há complexas mediações colocadas pelo cotidiano da vida social alienada e estranhada. É nesse cotidiano que atua a formação politécnica, potencialmente capaz de elevar as classes trabalhadoras a um patamar superior de compreensão de sua própria condição social e histórica. Aí atua a práxis revolucionária, principal ação político-pedagógica da formação do proletariado como sujeito social transformador. Nesse processo são gestados elementos que deverão ser consolidados - e que só podem ser consolidados com a superação da alienação e do estranhamento – no interior das novas relações não-estranhadas. Somente a partir dessas relações é possível a formação omnilateral.

Portanto, politecnia e omnilateralidade se complementam no processo desde a formação do sujeito social revolucionário até a consolidação do Ser social emancipado. Se a omnilateralidade como formação plena é impossível – senão de forma germinal - no seio das relações estranhadas da realidade do trabalho abstrato, é precisamente neste momento que a politecnia aparece como proposta de educação de grande importância, até que se consolidem as condições históricas de possibilidade de realização plena da omnilateralidade. A politecnia é a formação dos trabalhadores no âmbito da sociedade capitalista que, unida aos outros elementos da proposta marxiana de educação, deve encontrar o caminho entre a existência alienada e a emancipação humana em que se constrói o homem omnilateral.

Manacorda (1991), dentro da sua rica contribuição para o estudo do problema da educação em Marx, apresenta uma possibilidade diferente de entendimento do conceito de omnilateralidade. Para o autor, por exemplo, não aparece claramente estabelecida a distinção apontada aqui entre omnilateralidade e politecnia ou educação tecnológica, como ele prefere.

A própria consideração das condições históricas para a realização da omnilateralidade não aparece claramente estabelecida. Nos Manuscritos de 1844, essas condições históricas aparecem nos seguintes termos:
Así también la superación positiva de la propiedad privada, es decir, la apropriación sensible de la esencia y la vida humanas, del hombre objetivo, de las obras humanas para e por el hombre, no debe concebirse simplemente en el sentido del poseer o del tener. El hombre se apropia su esencia omnilateral de un modo omnilateral, es decir, como un hombre total. Cada uno de sus comportamientos humanos ante el mundo, la vista, el ódio, el olfato, el gusto, el tacto, el pensar, el intuir, el percibir, el querer, el actuar, el amor, en una palabra, todos los órganos de su individualidad, como órganos que son inmediatamente en su forma en cuanto órganos cumunes, representan, en su comportamiento objetivo o en su comportamiento hacia el objeto, la apropiación de éste. La apropiación de la realidad humana, su comportamiento hacia el objeto, es el ejercicio de la realidad humana” (Marx e Engels, 1987, p. 620, grifos do autor).
Quanto ao exposto, vejamos o que afirma Manacorda (1991, p. 82) a respeito de um comentário elogioso de Marx, presente n’O Capital, em relação a John Bellers, por ter este autor defendido desde os fins do século XVII a superação da educação e da divisão do trabalho da época por formarem indivíduos limitados:

Eis aí um homem educado com doutrinas não ociosas, com ocupações não estúpidas, capaz de livrar-se da estreita esfera de um trabalho dividido. Trata-se do tipo de homem onilateral que Marx propõe, superior ao homem existente...
Ora, como se observa claramente, o destaque de Manacorda está na ‘educação em doutrinas não ociosas’, nas ‘ocupações não estúpidas’ e na ‘estreita esfera do trabalho dividido’, portanto, em dimensões dos campos do ‘fazer’ e do ‘saber’ que não necessariamente rompem com a sociabilidade estranhada. O indivíduo alienado/estranhado pode alcançar tudo isso a que Manacorda se refere mesmo sem atingir o ponto mais elevado da condição do homem livre que se reconhece no seu trabalho e na ampla coletividade livre.
Os comentários elogiosos de Marx a indivíduos dotados de talento criativo especial muitas vezes são tomados como referência de modelos de formação, por exemplo, quando Marx enaltece o relojoeiro Watt, o barbeiro Arkwright e o artífice de ourivesaria Fulton por terem descoberto, respectivamente, a máquina a vapor, o tear e o navio a vapor (Marx, 1989, p. 559). Esse reconhecimento da capacidade inventiva acima da média ou ao talento especial está longe de caracterizar uma formação omnilateral.

Esse tipo de capacidade criativa individual sempre existiu na história da humanidade. Em todas as épocas houve homens e mulheres cuja competência inventiva ultrapassava a média de seu tempo, mas não é a isto que se refere o conceito de omnilateralidade de Marx, ele remete ao campo vasto, complexo e variado das dimensões humanas: ética, afetiva, moral, estética, sensorial, intelectual, prática; no plano dos gostos, dos prazeres, das aptidões, das habilidades, dos valores etc., que serão propriedades da formação humana em geral, desenvolvidas socialmente, portanto, não correspondem à genialidade de um indivíduo desenvolvido num determinado sentido especial ou ainda que seja em sentidos diversos.
Na consideração de Manacorda o conceito de omnilateralidade representa uma formação mais ampla, mais avançada, mas não antagônica ao metabolismo do capital, por isto, talvez, não haja necessidade da consideração das premissas materiais da construção do homem omnilateral - a criação de novas bases sociais que permitam o livre desenvolvimento das potencialidades humanas.
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Para saber mais

MANACORDA, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez, 1991.
MARX, K. O Capital - Para a Crítica da Economia Política. 13a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, 6 vols.
________. Grundrisse 1857-1858. In: MARX e ENGELS. Obras fundamentales. México - DF: Fondo de Cultura económica, 1985, vols. 6-7.
MARX e ENGELS. Escritos de juventud. In: MARX e ENGELS Obras fundamentales:. 1ª. Reimpresión. México - DF: Fondo de Cultura Econômica, 1987, vol. 1.
NOGUEIRA, M. A. Educação, saber, produção em Marx e Engels. São Paulo: Cortez, 1990.
NOSELLA, P. Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores: para além da formação politécnica. I Encontro Internacional de Trabalho e Perspectivas de Formação dos Trabalhadores. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 07 a 09 de setembro de 2006.
SAVIANI, D. Trabalho e Educação – Fundamentos histórico- ontológicos da relação trabalho e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, Anped, v.12, n.34, jan.-abr., 2007
SOARES, R. Entrevista com Mário A. Manacorda. Revista Novos Rumos. Ano 19, nº. 41, 2004.
SOUSA Jr., J. de. Sociabilidade e Educação em Marx. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da UFC, Fortaleza, 1994.
________. Politecnia e onilateralidade em Marx. Trabalho & Educação. Belo Horizonte: NETE, jan/jul, 1999, n. 5, p. 98-114.



terça-feira, 19 de julho de 2011

POLÍTICA: Memória,Narração e Imortalidade.

Ricardo George 


Aqui temos três importantes categorias para compreender o esquema epistêmico com o qual Hannah Arendt apresenta a política, quais sejam: a memória, que tem a ver com a história; a narração, que tem a ver com a possibilidade de resgatar os eventos; e a imortalidade, que coloca a ação no mundo concreto, tornando os homens seres capazes de continuidade no tempo. Se bem observarmos, perceberemos que há uma ligação entre as categorias, na qual uma possibilita a outra. Isso parece evidenciar-se quando notamos que, para a narração ocorrer, temos de fazer uso da memória. Assim, a imortalidade se impõe como aquilo que está sendo perpetuado no tempo pela memória e pela narração.
A noção que teria de ser superada, nesse contexto, é a noção de eternidade, tendo em vista que a mesma lança fora dos negócios humanos toda e qualquer ação, isto é, o que vale para o princípio da eternidade é aquilo que se vai conquistar em outra dimensão, como, por exemplo, na contemplação, não sendo preciso deixar nada aos pósteros, não importando legar nenhuma forma de permanência e de imortalidade. Em outras palavras, a experiência do eterno conduz os indivíduos a uma experiência singular, portanto, diretamente antagônica à pluralidade.[i] Esta não teria maior significado no esquema que se estruturasse no eterno.
Tudo isso mostra a clara distinção entre vida ativa e vida contemplativa, ou seja, entre um modus vivendi encarnado na vida concreta, na teia de relações humanas, e outro situado fora disso:
O fator decisivo é que a experiência do eterno, diferentemente da experiência do imortal, não corresponde a qualquer tipo de atividade nem pode nela ser convertida, visto que até mesmo a atividade do pensamento, que ocorre dentro de uma pessoa através de palavras, é obviamente não apenas inadequada para propiciar tal experiência, mas interromperia e poria a perder a própria experiência (ARENDT: 2001 p. 29).
           
Concluímos que a contemplação é a grande estrutura de demonstração da experiência do eterno, indo de encontro à imortalidade, na media em que a teoria se apresenta contrária à ação. A descoberta do eterno pelos filósofos os tirou da polis e os puseram em dúvida em relação à mesma. Estes optaram pelo confinamento no mundo da theoria, da contemplação, em detrimento da vida política e imortal da polis.
A opção de Hannah Arendt por narrar os fatos, isto é, contar “histórias” se dá na proporção em que ela percebe não mais ser possível explicar o novo que acomete o contexto político de então. O totalitarismo aparece, e a tradição não tem categorias suficientes para explicá-lo, visto que o mesmo não é fruto de evento político do passado nem, muito menos, uma nova versão da tirania ou do absolutismo, mas é uma novidade política que, nas palavras de Bruehl, provocou uma verdadeira “diáspora mental”, ou seja, conduziu a todos a uma encruzilhada que não tinha mais a direção conceitual segura para trilhar, mas colocou em crise a tradição, seus conceitos, suas doutrinas e sua verdade. Para Hannah Arendt, a saída é contar “histórias” e narrar fatos. Não há espaço no presente contexto para uma explicação essencialista ou universalista. O filósofo, nesse contexto, tem de se tornar um storyteller, pois não adianta mais partir de uma universalidade dada aprioristicamente, uma vez que o sentido só emergirá na medida em que o pensamento se debruçar sobre os acontecimentos (AGUIAR, In: BIGNOTTO; JARDIM, 2003, p. 216.)
            A narração, nesse contexto, surge como protagonista do processo de compreensão dos eventos na busca de entender o que foi vivido e, isso, é mais forte do que a busca por conceitos prontos, aprioristicamente dados.
Em outras palavras, as experiências vividas só podem ser equacionadas no nível do particular, ou seja, cada experiência como única carece de uma narração singular. As explicações universalistas perdem nesse contexto, espaço e sentido. A saída que Arendt encontrou foi narrar à experiência, isto é, buscou o recurso da memória e da narração para exaltar a natalidade e contrapor-se à mortalidade trazida pela experiência totalitária. Exalta-se a natalidade na medida em que a narração dos fatos constrói sentido para as novas gerações que se inserem em um mundo pronto, formatado. Contudo, a partir do que recebem, irá transformá-lo. Sendo assim, narrar esses eventos é também demonstrar a importância de se preservar o mundo público, de se preservar a ação e a vida plural.
A posição da ação no pensamento de Arendt, não é pensada a partir de um padrão, o que fez com que a autora compreendesse o seu trabalho como uma narrativa do grande “jogo do mundo”. Contar a ”história” é a única maneira de a ação permanecer na memória dos homens e de os feitos e as palavras humanas adquirirem dignidade por parte do pensamento. Ao se transformar numa storyteller, Arendt rejeita a posição de um ponto de vista arquimediano, como uma postura apropriada para o ato de filosofar e nos insere em um pensamento “narracional”, como o seu modus Philosophandi. Na figura do filósofo como storyteller, há um crescimento da importância do juízo para se compreender o filosofar em Arendt. O pensamento entendido como juízo ligado às circunstâncias mundanas libera o filósofo da tarefa de tematizar o absoluto – os princípios constitutivos de tudo ou o ser, de um ponto de vista arquimediano – e abre a vereda para a compreensão dos caóticos acontecimentos mundanos, isto é, viabiliza a transformação do filósofo em storyteller.
O pensamento “narracional” é o meio que o pensador encontra para lidar com os eventos quando os cânones da historiografia, da metafísica e do pensamento político perderam a capacidade de iluminar o que está acontecendo. Na ausência de padrões confiáveis, passa-se a invocar as próprias experiências como base de análise. Poderíamos dizer que Arendt desenvolve uma concepção de filosofia como storytelling, a habilidade de reter as experiências. Essa abertura do pensamento para experiência é que está na idéia de um “pensar apaixonado”, no qual a vida do espírito deita suas realizações mais importantes, não se dedicando às questões últimas, metafísicas, como nos antigos, mas no desinteressado prazer de julgar os acontecimentos. Nesse aspecto, o filósofo não está na companhia dos deuses, mas segue um percurso amplamente trilhado pelos historiadores, poetas e narradores (AGUIAR, In: BIGNOTTO; JARDIM, 2003, p. 218-219).
Por fim, parece-nos evidente a harmonia na conjugação das categorias aqui expostas: a memória, a narração e a imortalidade. Essa harmonia é possível por garantir o espaço público, isto é, um mundo politicamente organizado. Sendo assim, as ações dos indivíduos podem ser imortalizadas nos seus feitos e garantidas pela narração de memórias, em que ser imortal é, sobretudo, possibilitar a vida plural no espaço público. Desse modo, a delimitação do público e do privado vem à tona como reforço da ação garantida pela equivalência entre o discurso e a ação.


[i] A posição de Hannah Arendt visa demonstrar o quanto a eternidade é uma categoria alheia aos negócios humanos, o exemplo dado por Arendt é o da alegoria da caverna onde o filósofo, tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes, emerge da caverna. Põe-se, assim, em perfeita “singularidade”, nem acompanhado nem seguido de outros. Politicamente falando, se morrer é o mesmo que “deixar de estar entre os homens”, a experiência do eterno é uma espécie de morte. (ARENDT: 2001  p. 29)