Prof. Ricardo George
obs: Texto apresentado no VI Encontro Hannah Arendt em Pelotas -RS, em maio de 2012. Publicado nos anais.
Quando nos ocupamos do tema da verdade e de sua relação com a questão política, sabemos estar adentrando um terreno espinhoso. Todavia, o momento histórico em que a nação brasileira vive sob e emergência de uma comissão da verdade, aprovada em outubro de 2011, pelo senado brasileiro e instalada em Maio de 2012 pela Presidenta Dilma Rousseff, marca a relevância da discussão em torno da questão. Esta comissão terá por missão nos próximos dois anos apurar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar no Brasil.
Quando nos ocupamos do tema da verdade e de sua relação com a questão política, sabemos estar adentrando um terreno espinhoso. Todavia, o momento histórico em que a nação brasileira vive sob e emergência de uma comissão da verdade, aprovada em outubro de 2011, pelo senado brasileiro e instalada em Maio de 2012 pela Presidenta Dilma Rousseff, marca a relevância da discussão em torno da questão. Esta comissão terá por missão nos próximos dois anos apurar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar no Brasil.
Aqui já emerge uma de nossas
preocupações fundamentais, qual é o lugar que ocupa a verdade? Sobretudo, a
verdade factual. Esta segundo Arendt carece de proteção e resguardo político. Não
há melhor lugar para se preservar a memória dos fatos que sua inteira
manifestação ao público, na esteira do pensamento de Hannah Arendt, no bojo do
espaço público. Nenhum outro lugar protege mais a verdade factual, do que o
olhar plural. O projeto de lei que legitima a comissão está ciente disso quando
revela em seu Art. 5º que “As atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional
da Verdade serão públicas”, como serão públicas suas conclusões, conforme Art.3ºque
dispõe sobre os objetivos, no qual se relata no inciso III – “identificar e
tornar públicas as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias
relacionadas à prática de violações de
direitos humanos”
Assim,
nos deparamos com a necessidade de refletir sobre o tema como resgate
necessário da verdade e da memória política. Não nos ocuparemos da ditadura no
Brasil ou da comissão da verdade em si. O que nos interessa é com este pano de
fundo refletir sobre a questão da verdade e sua relação com a política.
Todavia, queremos enfrentar essa questão seguindo a trilha do pensamento
Arendtiano destacando três momentos, a saber: a) conceituar política em Arendt,
no intuito de encontrar qual seu sentido; b) estabelecer as diferenças entre a
verdade factual e racional; c) discutir os engodos que nos impõe a mentira e seu
uso nos referidos fatos históricos.
Ao nos depararmos com as questões que
envolvem a política, somos levados a considerar que passamos a trilhar o campo
da dissimulação e engodo. Não sem razão, tomamos esta situação como fato
estabelecido, haja vista que na dimensão prática da política, esse expediente é
uma constante na qual o engano e, a mentira, gozam do status de atitude necessária em detrimento da verdade. Para
agudizar a questão, no campo teórico, muitos defendem a necessidade da mentira
como artifício político necessário, outros a necessidade do alcance da verdade
em plenitude, onde indivíduos seriam capazes de ter em seu entendimento a
verdade absoluta dos fatos em detrimento do entendimento dos seus pares. Assim,
proliferou-se, em nosso meio, um descrédito vigoroso em torno da política. Diante
de tais constatações, ficamos nos indagando: é possível a relação entre verdade
e política? É possível o uso da mentira pra garantir outros ganhos considerados
mais nobres?
Não pretendemos, com
essas indagações, fornecer alguma resposta acabada ao problema, destarte,
guiados pelo pensamento Arendtiano, propomos uma reflexão no intuito de
estimular o debate em torno do problema que salta aos nossos olhos
cotidianamente, a saber: o da convivência turbulenta entre política e verdade
1 A Noção
de Política em Arendt
Neste primeiro, momento
iremos buscar a definição de política para Arendt, sem ainda pormenorizar o
debate com a questão da verdade. Hannah Arendt parte do pressuposto que o
conceito de política desenvolvido pela tradição guarda equívocos. Equívocos
estes que acabam por tornar opaca a visualização daquilo que representa a
política. Arendt demonstra que a tradição esvaziou de sentido a política ao
retirá-la do convívio da praça, isto é, de elevar os negócios humanos ao lócus das ideias sempiternas, onde os
conceitos reinam absolutos em detrimento da vida real e contingente. Neste
sentido, seu objetivo era demonstrar o quanto a tradição supervalorizou a vida
contemplativa, que na busca das verdades eternas abandonou a ação, categoria
política fundamental para Arendt (Cf, SILVA, 2011, p, 13).
Assim, conforme Aguiar (2001, p, 74) o sumo da significação política da
ação em Arendt reside na noção de pluralidade. Com esse termo, a autora visa a contrapor-se radicalmente à posição contemplativa e
afirmar a necessidade de se considerar os cidadãos e seus interesses e perspectivas
(doxas), na constituição da
comunidade política. Tais constatações nos colocam na rota da conceitografia
Arendtiana da política, na medida em que a autora afirma que “A política se
baseia no fato da pluralidade humana. Deus criou o homem, mas os homens são um produto humano,
terreno, um produto da natureza humana” (ARENDT, 2010, p,144). Nesta
perspectiva, somos autorizados a afirmar que apenas na esfera dos negócios
humanos e, em meio, a pluralidade é que ação política acontece, sem o risco do
esvaziamento de sentido, ao se buscar um lugar pretensamente seguro fora do
mundo, quando seu maior papel deveria ser a proteção deste. Mundo aqui
entendido, em seu sentido político de acordo com André Duarte (2002, p, 64) como aquele conjunto de instituições e leis
que é comum e aparece a todos, e que, por ser um artefato humano, está sujeito
ao desaparecimento em determinadas situações-limites, nas quais se abala o
caráter de permanência e estabilidade associados à esfera pública e aos objetos
e instituições políticas que constituem o espaço-entre que unifica e separa os
homens. Trata-se, portanto, daquele espaço institucional que deve sobreviver ao
ciclo natural da natalidade e mortalidade das gerações, e que se distingue dos
interesses privados e vitais dos homens que aí habitam, a fim de que se garanta
a possibilidade da transcendência da mortalidade humana por meio da memória e
da narração das estórias (stories)
humanas.
Estes esclarecimentos sobre a política nos conduz, ao
entendimento dessa atividade, como aquilo que deve ser desenvolvido por iguais e
livremente estabelecida em que se garanta a todos o direito de isegoria, isto é, igualdade de fala e
manifestação.
Em suma, a política é a atividade que protege o mundo na
medida em que vislumbra a permanência deste, via natalidade e pluralidade,
contrariando a lógica da tradição, que fez da política contemplação e,
contrariando a lógica da modernidade que reduziu à política a proteção da vida
privada, tornando esta serva da economia, inscrita numa sociedade de
consumidores pautados na lógica do consumo. (CF, ARENDT.2001a, p,138)
Tendo posto isto,
entendemos ter demarcado o conceito de política em Arendt e sua implicação com
a ação e a pluralidade. Agora nossa pretensão recai sobre a relação da política
com a verdade em suas perspectivas de verdade factual e teórica.
2 Política, Verdade e Espaço Público
Tomamos como ponto de discussão a partir de agora a questão da verdade e sua relação com a
política. Assim, a primeira grande questão que se apresenta diz respeito à
relação desse par conceitual ao ponto de Arendt esclarecer que
Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma
com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes
políticas a sinceridade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas
necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como
também do estadista. Por que é assim? (...) É da essência mesma da verdade o
ser impotente e da essência do poder o ser embusteiro? (ARENDT, 2001b, p, 283)
A constatação de Arendt a respeito do conflito entre política
e verdade nos coloca no centro do problema de nossa discussão, qual seja: o
estabelecimento de uma possível relação entre política e verdade. Ao nos
indagarmos sobre a possibilidade de convivência de uma com a outra, nos
ocupamos de perguntar se é possível a sobrevivência das relações em um mundo
que se pretende crível. Todavia, como garantir a credibilidade dos fatos e,
admitir o embuste e, a mentira, como atividade política fundamental e segura?
Não estaríamos diante de um paradoxo? na medida em que afirmamos que as
relações sociais e, os negócios humanos, carecem da credibilidade da verdade
para se perpetuarem e, ao mesmo tempo, admitimos que é da natureza da política
a mentira.? Não seria a política, via ação, a garantia das esferas públicas? Assim,
nossa inquietação, recai sobre a indagação de como é possível sustentar a
mentira como algo plausível na política. Não temos a ingenuidade moralista de
negar a mentira, esta se inscreve na prática humana como característica de
nossas ações e, portanto, nas ações também políticas, a questão não é negá-la,
ou em uma perspectiva deontológica do deve ser, condenar sua prática por não
ser universalizável, mas refletir se esta pertence naturalmente à política ou, se
é um subterfúgio que se apresenta conforme a conveniência. Ora, se assim for,
ou seja, se a mentira não é política, mas uma prática usada por esta,
concluiremos que a mentira, sendo exógena a política, não coaduna com ela.
Sendo esta, usada, na política, por posturas ardis e inescrupulosas que em nome
de seus interesses usam de tal expediente, em nome de um “bem maior”. Bem maior
este, que significa, em muitos dos casos, a manutenção dos seus interesses, já
que se a verdade viesse à tona, o mundo montado por estes viria abaixo. Isto
nos direciona a negação da tese que é da natureza da política a mentira. Destarte,
entendemos que essa é utilizada e, precisa ser enfrentada, enquanto dimensão do
espaço de conflito, próprio da política, na qual via argumentação, ocupação dos
espaços, liberdade de ação e fala se tenha como contraponto a perspectiva de
sempre trazer à tona a verdade, ainda que ao custo de desmoronar os interesses
de determinados grupos que se instalam no poder.
O totalitarismo e suas
posturas inescrupulosas de desmandos de toda ordem, nos servem de exemplo
heurístico, de como em nome da manutenção do poder, a mentira pode servir bem a
interesses escusos a ponto de toda verdade ser negada, ainda que esta tenha sido
fato estabelecido. Distorcê-lo, negá-lo ou variar suas versões são maneiras de fragilizar a verdade, sobretudo, a verdade
factual, que enfrenta um moderno tipo de sofista. Estes, os sofistas modernos,
não se preocupam em confundir o pensamento ou estrutura lógica e sim, o fato
histórico, todavia, esse será
esclarecido adiante.
3 Verdade factual e Verdade
racional
Passemos agora ao exame
da verdade em suas dimensões que nos interessam, a saber: enquanto busca das ideias
sublimes e sempiternas e enquanto verdade factual. Para tanto tomaremos o totalitarismo
como pano de fundo.
Assim,
temos que a situação de um poder centralizador em que as decisões acontecem
sempre de cima para baixo sem levarem em conta a pluralidade e a liberdade dos
indivíduos, foi a situação experienciada por Arendt na Alemanha nazista. Essa
experiência marcou-a, ainda mais quando tomou consciência de Auschwitz em 1943,
embora, de início, Hannah Arendt, que já estava fora da Alemanha, não tivesse
acreditado no fato. Ela entendia que este não cabia no contexto em questão, em
vista de não apresentar, segundo ela, “qualquer objetivo militar” e por “ir de
encontro a toda necessidade”. Contudo, o fato era real e verdadeiro e, a partir
daí, ficava mais claro para Hannah Arendt o fato de que questões centrais da
vida humana e da política estavam em xeque pelo momento histórico que se
apresentava. De tal modo, que quando teve que acreditar em Auschwitz,
pronunciou-se da seguinte forma: Foi na verdade como se um abismo se abrisse
diante de nós (...) o assassinato sistemático de cadáveres nunca poderia ter
acontecido (...) Auschwitz não deveria ter acontecido.[1]
A
partir desses acontecimentos Arendt negou-se a reflexões que se constituíssem a
partir de princípios últimos, uma vez que esse tipo de posição pode implantar,
junto a outros fatores, o autoritarismo. A opinião do outro, nesse sistema, não
vale nada, a ponto de a vida ser ceifada por motivos de puro desatino
autoritário. Hannah Arendt chega a essa posição não de forma gratuita, mas por
ver que a Filosofia, desde os gregos, legou à humanidade uma tradição na qual a
verdade poderia ser alcançada via contemplação. Sendo assim, toda essa tradição
teria respaldado esses modelos políticos decisionistas, pois quem tem a
“verdade” não precisa pôr em debate nenhuma questão. Termos como pluralidade e
espaço público passam a ser figuras de retórica, sem nenhum significado
contundente, mas apenas denominações da massa conduzida pelos iluminados[2].
É
justamente contra isso que Hannah Arendt se posiciona, isto é, contra posturas
que negam o espaço público, ou seja, a possibilidade dos indivíduos se
articularem e discutirem propostas, fazendo valer o direito de expressão e de
ação, sem medo da repressão ceifadora de vidas e liberdades. Haja vista, que o sentido
da política é a liberdade (Arendt, 2002, p,38)
Dito
isto, temos até aqui duas posições a dos que acham ser possível alcançar a
verdade absoluta, neste caso estamos nos referindo ao posicionamento
solipsistas que via contemplação acreditavam alcançar o real o que implicaria
em um modelo de autoritarismo, na medida em que nega ao outro o direito de
manifestar-se já que a verdade foi encontrada. É o modelo racional. Outra
posição é o da verdade factual enquanto evento que pode ser distorcida e, até
jogada ao esquecimento, caso não seja protegida pela visibilidade e permanência
no espaço público.
Assim,
questão da verdade se põe primeiramente na disputa entre a verdade racional e a
verdade factual. A verdade racional é por excelência contemplativa e chega a
ter características solipsistas, na medida em que ela não pode ser comunicada,
pois cada indivíduo tem de encontrá-la por si mesmo. É o modelo defendido por
Platão, após sua decepção com a pólis. Esse modelo aristocrático que protegeu o
filósofo e sua atividade contemplativa da turbulenta e contraditória vida polis negou a pluralidade e a
comunicação do que importa, haja vista que para Platão a “verdade não pode ser
obtida nem comunicada entre a massa” (ARENDT, 2001b, p, 292).
A
grande questão da verdade racional é o que essencialmente a constitui, ou seja,
ser sempiterna e trazer em si princípios que podem servir para estabilizar as
questões dos homens em seu cotidiano, ou seja, surge de um passeio do filósofo
pelo céu das idéias, em busca de princípios últimos e inquestionáveis, isto é,
de verdades inabaláveis. Nesse sentido, a verdade racional é alcançada por
espíritos especiais, que conseguem atingir um nível de reflexão suficiente para
dar conta do mundo pelos princípios antes encontrados em suas reflexões. Admitir essa postura da verdade racional,
contudo, é acolher um caráter seletivo, no qual está determinado quem tem a
verdade e a quem todos devem seguir. Talvez tenha sido esse o grande equívoco
da tradição filosófica no tocante à política: pensar modelos acabados,
paradigmas a serem seguidos, esvaziando a capacidade dos homens da praça[3] de
se organizarem por si próprios no processo político, sem a intervenção de uma
iluminação que parta de único indivíduo.
A
proposta platônica de que o bom governo da polis
ocorreria quando os reis se tornassem filósofos ou os filósofos reis é uma
posição que traz, potencialmente, traços autoritários, tirânicos, ao se
considerarem os riscos, que são enormes. O que teríamos de fato seria um
rebanho, crédulo e ingênuo, politicamente anulado pelo controle dessas verdades
sublimes, que estariam localizadas em um indivíduo ou em uma casta especial,
contrariando a ideia de pluralidade. Nas palavras de Andre Duarte,
Já a partir de Platão, a política deixara de ser concebida
como campo de experiência dotado de dignidade própria; mostra-o o fato de que a
política tenha sido pensada pelo filósofo, desde Platão, como oriunda “da
necessidade que constrange o animal humano a viver em comum com os demais” e
não como fundada na “condição humana da pluralidade” e na “capacidade para
agir” (apud, DUARTE, 2000 p, 164)
É
compreensível que a busca dessa verdade acabada e sublime tenha a pretensão de
superar a posição sofista que sacrificava as verdades em nome de suas vitórias
passageiras via argumentação, em uma flagrante desvalorização da doxa. Todavia, Esse modelo inaugurado
por Platão ao se decepcionar com a polis,
põe em descrédito a verdade do mundo (doxa),
assim, considerada por nós por se opor a verdade alcançada pretensamente pelos
iluminados e, que se encontra fechada, nos círculos dos filósofos e
esclarecidos, como pretendeu Platão. Verdade do mundo, por que é comunicável e
inteligível a todos que pretendam discuti-la, ao contrário, da incomunicável e
hermética verdade sempiterna do céu das ideias, destinada aqueles capazes da
contemplação. Em consonância com André Duarte diríamos que,
Sócrates
[diferentemente de Platão com sua verdade contemplativa] não queria educar os
cidadãos; estava mais interessado em aperfeiçoar-lhes as doxai, que constituíam a vida política em que ele tomava parte.
(DUARTE, 2000, p, 171)
Assumir,
qualquer modelo que vise uma verdade absoluta e hermética, alcançada por
poucos, não é a melhor saída, haja vista que nossa época nos legou outro modelo
de sofista que não se satisfaz em anular argumentos, mas empreende forças para
negar fatos comprometendo aquilo que é o evento histórico, situação primordial
da verdade factual, de tal modo que a luta hoje contra os sofistas continua, só
que os atuais estão a usar outros alvos; de qualquer forma, utilizar modelos
absolutos de uma verdade pessoal, unilateral, não é a saída. Os sofistas da
atualidade se diferenciam dos antigos de forma, simples: os antigos se
satisfaziam com a vitória passageira do argumento às custas da verdade,
enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura mesmo que às custas da
realidade. (ARENDT. 1989, p. 29). Passemos agora ao exame da verdade factual.
A
verdade factual é a verdade da vida, ou seja, a verdade que corresponde à
atuação do homem no espaço público. Esta encerra como maior marca a ação, e
somente ocorre quando aos indivíduos é possibilitado o direito de fala e de
ação, embora muitas vezes as situações sucedam para negar isto em favor de um
grupo ou indivíduo que pretenda controle total; de qualquer forma, a ação e sua
ocupação histórica a demarcam diferenciando-a de qualquer verdade
contemplativa.
Ainda
é de se observar que, nessa comparação direta entre a verdade factual e a
verdade racional, evidencia-se a fragilidade da verdade factual, não uma
fragilidade qualquer, que lhe possa trazer um abalo circunstancial, mas uma
fragilidade que pode eliminá-la a ponto de a mesma desaparecer (Cf. ARENDT,
2001b, p. 287), visto que os acontecimentos históricos, isto é, aquilo que é da
ordem dos assuntos humanos é potencialmente mais frágil do que as teorias
elaboradas pela verdade racional.
O
uso do poder nesse contexto é central, na medida em que fatos podem ser
distorcidos e manipulados em favor de quem detém o poder. Sendo assim, podemos
tranqüilamente afirmar que a verdade factual é, sobretudo, uma verdade
política. É política porque se insere no âmbito dos negócios humanos. É
política porque é presente na vida ativa e, como fato, ela é passível de
mentira, de engano ardiloso para a manutenção do poder, ainda que no plano dos
controles e manipulações.
Assim,
temos que a verdade factual é contrariada pela mentira, na medida em que esta é
histórica. O contrário da verdade factual não é o erro, mas a mentira. A esse
respeito escreve Arendt: A falsidade deliberada, a mentira cabal, somente entra
em cena no domínio das afirmações factuais (ARENDT,1989, p. 288).
A
verdade factual enfrenta, em sua fragilidade a acusação de não passar de uma ilusão,
e aqui aparecem pelo menos duas implicações. A primeira é o poder em vigor
sempre há de camuflar ou distorcer ou, pelo menos, vai tentar realizar isso,
pondo a verdade factual no âmbito da ilusão, como algo irreal, à medida que
isso o protege, pois tira o caráter da verdade factual do âmbito do evento e o
situa no contexto da dúvida sem maiores evidências. Ferido por essa distorção,
o espaço público corre o risco de ser negado e desembocar em puro
autoritarismo. Aí reside a segunda implicação.
O que nos espanta nessa relação tensa e frágil entre política
e verdade é que a mesma sendo atual e, corriqueira em nossa época, não seja
considerada como algo perigoso e daninho a vida pública e a memória dos eventos
e fatos. Impressiona a defesa da necessidade da mentira como instrumento do
poder desde a micro estrutura de uma associação aos negócios de Estado,
naturalizou-se o engodo e a dissimulação. A questão agrava-se quando percebemos
que apesar dos recursos eletrônicos capazes de registrar um massacre e, fazer
as imagens correr o mundo, continuamos a conviver com a mentira, a negação e a distorção
– para isto basta lembrarmos-nos das chamadas revoltas do mundo Árabe que teve
inicio na Tunísia e Egito e que serviram de exemplos de como, apesar dos fatos
os governos tentavam manipular as informações distorcendo os eventos, fato
levado as últimas conseqüências pelo governo Sírio de Bachar Al- Assas,
todavia, graças a publicização e mobilização os ditadores Bem Ali e Hosni Mubarack caíram.
Por
fim, no mais contundente
exemplo histórico de manipulação da verdade temos o totalitarismo, que em sua
estrutura, fosse de esquerda ou de direita isto era facilmente observado, na
medida em que na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin, era mais perigoso
falar de campos de concentração e extermínio, o que não era nenhum segredo, do
que emitir concepções acerca do antissemitismo. (ARENDT, 2001b, p,293)
Considerações finais
Ao
levantarmos a questão da relação política e verdade temos a pretensão de trazer
à baila o debate em torno de duas questões centrais, no que diz respeito à
verdade. Primeiro, esclarecer que a postura de se ter uma verdade sublime e
última sobre a realidade como posse de algum iluminado ou grupo de iluminados
desemboca em autoritarismo. Segundo, que a verdade factual carece da cena
pública para garantir sua existência e contundência dos fatos, não podendo ser
omitida ou reclusa aos interesses de qualquer poder, sob pena de distorção ou
desaparecimento.
Assim,
nosso entendimento do assunto emerge como uma provocação a permanência plena
dos fatos no espaço público pra que não pereçam diante de posições extremadas
que buscam negar os eventos, tais como as negações do governo do Irã sobre o
Holocausto, “O pretexto (holocausto) para a criação do regime sionista (como
Ahmadinejad se refere a Israel) é falso. É uma mentira baseada em uma alegação
mítica e não comprovada. Confrontar o regime sionista é um dever nacional e
religioso”, palavras de Ahmadinejad que objetivam apenas uma coisa; minar a
credibilidade da verdade factual quiçá sua existência.
Por
fim, tornamos claro que não pretendemos uma discussão aprofundada dos eventos
históricos aqui citados, ao contrário, nosso objetivo é a análise da verdade
enquanto fenômeno frágil e politicamente importante para a história dos homens
e do desenvolvimento de suas teias de relações. Nosso apoio no pensamento de
Arendt visa garantir a circulação de uma compreensão de verdade que comungamos
na medida em que entendemos ser necessária a preservação da memória via espaço
público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, Trad.
Roberto Raposo, Ed. Cia da Letras. São Paulo, 1989
_______________.A condição
humana, Trad. Roberto Raposo, Ed, Forense universitária, Rio de Janeiro, 2001a
_______________. Entre o
passado e o futuro, Ed. Perspectiva, São Paulo,2001b
_______________. O que é a Política. Trad. Reinaldo Guarany.
Ed, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2002
________________. A promessa
da política, Trad. Pedro Jorgensen, Ed. Difel, Rio de Janeiro,2010.
AGUIAR, Odilio Alves. Filosofia e Política no
Pensamento de Hannah Arendt, Ed. UFC, Fortaleza, 2001
DUARTE, André, Hannah Arendt e a modernidade:
esquecimento e redescoberta da política. In: Transpondo Abismos: Hannah Arendt
entre a Filosofia e a Política. Org. Adriano Correia, et, al. Forense
universitária. Rio de Janeiro.2002
______________, O Pensamento
à Sombra da Ruptura – política e filosofia em Hannah Arendt. Paz e terra, São
Paulo, 2000
SILVA, Ricardo G. de Araújo. A categoria da ação na
Abordagem de Hannah Arendt, In: Ciências Humanas em debate Ed. UFRPE, Recife,
2011
Projeto de lei comissão da verdade.In:http://www.camara.gov.br/sileg/integras/771442.pdf, Acessado em 22/05/2012
Fala de Ahmadineja http://pt.wikinews.org/wiki/Presidente_iraniano_nega_novamente_o_Holocausto
acessado em 22/05/2012
[1] Entrevista com Günther Gaus-Levy,
televisionada em 28 de outubro de 1964, no segundo canal de televisão Alemã. A
tradução francesa desse texto, realizada por Sylvie Courtine-Denamy, também foi
publicada, em 1980, no nº 6 da revista Esprit
(p. 19-40)
[2] Na alegoria da caverna, o
indivíduo (o filósofo) que sai da caverna e encontra a luz (a verdade) retorna,
então, à mesma para propagá-la aos outros sem levar em conta a opinião dos
mesmos.
[3] Referência a ágora, local de
debate político na sociedade grega da Antiguidade.
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