quarta-feira, 31 de agosto de 2011

UMA QUESTÃO DE CIÊNCIA, DIREITOS HUMANOS E BIOÉTICA

Obama pede desculpas por experiência com sífilis na Guatemala
O presidente Barack Obama expressou seu profundo pesar a Álvaro Colon, presidente da Guatemala, por um estudo realizado na década de 1940 no qual 696 guatemaltecos foram deliberadamente infectados com sífilis. A Secretária de Estado americana, Hillary Clinton, e a secretária de saúde e serviços humanos, Kathleen Sebelius, emitiram uma declaração pública conjunta afirmando que o estudo foi “claramente antiético”. Os participantes foram infectados com sífilis para verificar se a penicilina poderia ser utilizada imediatamente após relações sexuais para evitar a infecção. Em sua declaração, Hillary e Kathleen afirmaram: “Apesar de esse evento ter ocorrido há mais de 64 anos, é vergonhoso que uma pesquisa tão reprovável tenha ocorrido sob o pretexto de melhoria da saúde pública. Sentimos muitíssimo e pedimos perdão a todos os indivíduos afetados por tais práticas abomináveis de pesquisa”. Tanto as secretárias quanto o presidente afirmaram que as atuais regulamentações norte-americanas sobre pesquisa médica proíbem tais práticas. O estudo na Guatemala foi descoberto por Susan Reverby, historiadora médica no Wellesley College, em Massachusetts, e autora de dois livros sobre o experimento Tuskegee nos Estados Unidos. Nesse experimento, funcionários da saúde pública realizaram o seguimento de fazendeiros negros pobres com sífilis de 1932 a 1972 no Alabama, porém não ofereceram tratamento quando a penicilina tornou-se disponível, a partir da década de 1940. Susan estava pesquisando a vida de John Cutler, envolvido no experimento Tuskegee. Ela encontrou seus textos no arquivo da Universidade de Pittsburgh, onde ele se tornou mais tarde um professor respeitado. “Os únicos textos que Cutler deixou para trás eram sobre a Guatemala”, disse ela ao BMJ. O Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos estava trabalhando para melhorar os serviços de saúde pública na Guatemala. O estudo foi financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde, pelo Pan American Health Sanitary Bureau (que se tornou a Organização Pan-americana de Saúde) e pelo governo da Guatemala. Diferentemente do experimento Tuskegee, os participantes do estudo na Guatemala foram deliberadamente infectados com sífilis. O estudo, realizado de 1946 a 1948, tinha a esperança de descobrir se a nova droga, a penicilina, poderia ser usada imediatamente após relações sexuais para evitar a infecção por várias doenças sexualmente transmissíveis, em especial a sífilis.Os participantes não foram informados do propósito do estudo, nem forneceram consentimento livre e informado. Foram incluídos prostitutas, soldados, prisioneiros e doentes mentais. Em seu artigo, que será publicado no Journal of Policy History, Susan relata que as prostitutas foram utilizadas para transmitir a doença aos prisioneiros durante visitas permitidas.Mais tarde, foram feitas tentativas de infectar os participantes com a bactéria da sífilis colocada sobre o pênis dos homens ou sobre o antebraço e o rosto ligeiramente escarificados, e em alguns casos através de punções na coluna. Os participantes receberam injeções de penicilina para tentar evitar a infecção. .[ fonte: Janice Hopkins . http://www.bmjbrasil.com.br/ - acesso em 31-08-2011]
A notícia a cima chama atenção pra o que estamos fazendo com a Ciência e a tecnologia. Não podemos em nome do conhecimento, do “progresso” ou do lucro, sacrificar nossos semelhantes ou  a natureza. Como nos conclama Humberto Maturana, é preciso reconhecer o outro como legítimo outro (MATURANA, 2002. p. 23). O experimento realizado com os guatemaltecos expressa a instrumentalização da razão e do saber técnico, sem considerar seus efeitos políticos, bioéticos e vitais. Nenhuma ciência pode se considerar a cima do bem estar humano, toda e qualquer prática científica deve considerar o estabelecido na declaração de Nuremberg, (1946), a saber:

1. O consentimento voluntário do paciente humano é absolutamente necessário

2. O experimento deve visar resultados saudáveis à sociedade, que não tenha outros métodos ou meios de estudo, e deve ser feito com toda técnica e com absoluta necessidade.

3. O experimento deve ser baseado em resultados de experiência em animais e com o conhecimento de História natural da doença ou outro problema em estudo que justifique o experimento por seus resultados antecipados.

4. O experimento deve ser conduzido de forma tal que evite todo sofrimento ou injúria física ou mental.

5. Não se deve fazer experimento algum quando se tenha a priori razão para acreditar que possa resultar em morte ou desabilidade, exceto quando se trata de médicos.

6. O grau do risco a ser corrido pelo paciente não deve exceder a importância do problema a ser resolvido pelo experimento.

7. Todos os cuidados e precauções devem ser tomados para evitar a mais remota condição de injúria, morte ou incapacidade.

8. O experimento deve ser feito somente por pessoas cientificamente qualificadas.

9. Durante o experimento o ser humano deve ser mantido em condições de poder suspendê-lo.

10. O cientista deve suspender o experimento a qualquer tempo que o julgar capaz de incapacitar o paciente, lesá-lo ou matá-lo.



[recomendamos a leitura do artigo: “Bioética e Direitos Humanos” que se encontra em pdf ao lado direito do blog]

Referência Bibliográfica

MATURANA. Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Trad. José Fernandes Campos Forte. 3ª edição. Ed. UFMG. Belo Horizonte – MG. 2002.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

OMNILATERALIDADE ?


# tendo em vista dúvidas sobre o nome do nosso espaço virtual, fizemos uso da explicação do professor Justino, que é muito esclarecedora.
Por Justino de Sousa Junior

O conceito de omnilateralidade é de grande importância para a reflexão em torno do problema da educação em Marx. Ele se refere a uma formação humana oposta à formação unilateral provocada pelo trabalho alienado, pela divisão social do trabalho, pela reificação, pelas relações burguesas estranhadas, enfim.

Esse conceito não foi precisamente definido por Marx, todavia, em sua obra há suficientes indicações para que seja compreendido como uma ruptura ampla e radical com o homem limitado da sociedade capitalista.

A unilateralidade burguesa se revela de diversas formas: de início a partir da própria separação em classes sociais antagônicas, base segundo a qual se desenvolvem modos diferentes de apropriação e explicação do real; revela-se ainda por meio do desenvolvimento dos indivíduos em direções específicas; pela especialização da formação; pelo quase exclusivo desenvolvimento no plano intelectual ou no plano manual; pela internalização de valores burgueses relacionados à competitividade, ao individualismo, egoísmo, etc. Mas, acima de tudo, a unilateralidade burguesa se revela nas mais diversas formas de limitação decorrentes do submetimento do conjunto da sociedade à dinâmica do sociometabolismo do capital. Nos Manuscritos de 1844, quando analisa a propriedade privada como aquilo em que se condensa a criação do trabalho humano alienado, e sua contribuição decisiva para a definição de uma base social em que se impõe a unilateralidade humana, Marx afirma:

La propiedadad privada nos há vuelto tan estúpidos y unilaterales, que un objeto solo es nuestro cuando lo tenemos y, por tanto, cuando existe para nosotros como capital o cunado lo poseemos directamente, cuando lo comemos, lo bebemos, lo vestimos, habitamos en él, etc., en una palabra, cuando lo usamos (Marx e Engels, 1987, p. 620).
A esse dado fundamental da unilateralidade humana corresponde o fato de que a dinâmica da vida social se submete a imperativos não determinados pelos indivíduos associados segundo um planejamento que observe acima de tudo as necessidades humanas mesmas. A dinâmica da vida social é determinada pelo movimento de valorização do capital, que submete os indivíduos, em geral, a agentes da sua ‘vontade’.
Embora não haja em Marx uma definição precisa do conceito de omnilateralidade, é verdade que o autor a ela se refere sempre como a ruptura com o homem limitado da sociedade capitalista. Essa ruptura deve ser ampla e radical, isto é, deve atingir uma gama muito variada de aspectos da formação do ser social, portanto, com expressões nos campos da moral, da ética, do fazer prático, da criação intelectual, artística, da afetividade, da sensibilidade, da emoção, etc. Essa ruptura não implica, todavia, a compreensão de uma formação de indivíduos geniais, mas, antes, de homens que se afirmam historicamente, que se reconhecem mutuamente em sua liberdade e submetem as relações sociais a um controle coletivo, que superam a separação entre trabalho manual e intelectual e, especialmente, superam a mesquinhez, o individualismo e os preconceitos da vida social burguesa.
O homem omnilateral não se define pelo que sabe, domina, gosta, conhece, muito menos pelo que possui, mas pela sua ampla abertura e disponibilidade para saber, dominar, gostar, conhecer coisas, pessoas, enfim, realidades – as mais diversas. O homem omnilateral é aquele que se define não propriamente pela riqueza do que o preenche, mas pela riqueza do que lhe falta e se torna absolutamente indispensável e imprescindível para o seu ser: a realidade exterior, natural e social criada pelo trabalho humano como manifestação humana livre.
Nos Manuscritos de 1844, especialmente, aparecem elementos fundamentais para a compreensão do conceito de omnilateralidade. É com base neles que se pode afirmar que o homem omnilateral equivale ao homem rico que Marx desenvolve no citado texto: “El hombre rico es al mismo tiempo, el hombre necesitado de uma totalidad de manifestaciones de vida humanas” (Marx e Engels, 1987, p. 624, grifos do autor). Aqui Marx discute a riqueza humana identificando-a à capacidade de desenvolver demandas humanas, isto é, a riqueza aqui diz respeito à carência de manifestações humanas não-fetichizadas: um homem é tanto mais rico quanto mais demanda manifestações humanas e “la más grande de las riquezas, (es) el otro hombre” (Marx e Engels, 1987, p. 624, grifo do autor).
O homem rico se define pela carência de um conjunto variado de manifestações humanas que o plenifiquem, nas quais se reconheça e pelas quais se constitui. Necessidades não determinadas pelo caráter de mercadoria, segundo a dialética de Marx, só poderiam nascer e serem amplamente satisfeitas em relações não-burguesas, em relações que ultrapassem o sistema de relações do capital.
Segundo o exposto, a omnilateralidade tem como condição a superação do capital ou, de acordo com os Manuscritos, da alienação e da propriedade privada:
La superación de la propiedad privada representa, por tanto, la plena emancipación de todos los sentidos y cualidades del hombre. (...) [Por sua vez], el hombre sólo deja de perderse en su objeto cuando éste se convierte para él en objeto humano o en hombre objetivo (Marx e Engels, 1987, p. 621, grifo do autor).
É na sua ação sobre o mundo que o homem se afirma como tal, no entanto, ele precisa atuar como um todo sobre o real, com todas as suas faculdades humanas, todo seu potencial e não como ser fragmentado, pois só assim ele poderá se encontrar objetivado como ser total diante de si mesmo.
Nos Grundrisse, mais uma vez, Marx apresenta elementos para a compreensão da omnilateralidade como riqueza do desenvolvimento humano amplo e livre, nos seguintes termos:
Ahora bien, qué es, in fact, la riqueza despojada de su estrecha forma burguesa, sino la universalidad, impulsionada por el intercambio universal de las necesidades, las capacidades, los goces, las fuerzas productivas, etc., de los individuos? Qué es sino el desarrollo total del dominio del hombre sobre las fuerzas naturales, tanto las de la naturaleza misma como las de la propia naturaleza humana; la absoluta potenciación [de su capacidad] por obra del esfuerzo de sus dotes creadoras, sin más premisa que el desarrollo histórico precedente, que lleva a convertir en fin en si esta totalidad del desarrollo, es decir, el desarrollo de todas las fuerzas humanas en cuanto tales, sin medirlo por uma pauta preestabelecida, y en que el hombre no se reproducirá como algo unilateral, sino como una totalidad; en que no tratará de seguir siendo lo que ya es o ha sido, sino que se incorporará al movimiento absoluto del devenir? (Marx, 1985, p. 345-346)
Nesse trecho evidencia-se a contradição entre a sociabilidade estranhada, com suas restrições e unilateralidades de um lado, e a universalidade, a totalidade do desenvolvimento humano e o devenir, de outro. Marx associa o que se pode chamar de omnilateralidade, que se opõe à unilateralidade burguesa, ao movimento do devenir, das novas relações emancipadas. Aqui aparece mais uma vez com clareza a idéia da universalidade, termo com o qual o conceito de omnilateralidade estabelece uma relação de correspondência.

voltar ao topo

--------------------------------------------------------------------------------

Omnilateralidade & politecnia

O conceito de omnilateralidade guarda relação com outro conceito marxiano importante para o problema da formação humana que é o de politecnia. O elemento fundamental de distinção entre os dois conceitos é justamente o fato de que a politecnia representa uma proposta de formação aplicável no âmbito das relações burguesas, articulada ao próprio momento do trabalho abstrato, ao passo que a omnilateralidade apenas se faz possível no conjunto de novas relações, no ‘reino da liberdade’. Como lembra Nogueira (1990, p. 129):



Para Marx, a educação politécnica não é utopia da criação de um indivíduo ideal, desenvolvido em todas as suas dimensões. Mas é antes, dialeticamente e ao mesmo tempo, uma virtualidade posta pelo desenvolvimento da produção capitalista e um dos fatores em jogo na luta política dos trabalhadores contra a divisão capitalista do trabalho...

A noção de politecnia, antes da formulação marxiana, surge nas experiências teóricas e práticas dos socialistas utópicos. Por sua vez, a noção de politecnia enquanto formação polivalente - ou pluriprofissional modo como Manacorda (1990) e Nosella (2006) nomeiam a noção de politecnia defendida pelo capital - em grande medida, é uma realidade imposta pelo próprio desenvolvimento da grande indústria. Em Marx, todavia, a proposta de politecnia adquire novos relevos. Para esse autor, ela era, acima de tudo, uma forma de se confrontar com a formação unilateral e os malefícios da divisão do trabalho capitalista. Ela representava a reunião de diversos aspectos que, uma vez associados, significariam uma formação mais elevada dos filhos dos trabalhadores em relação às demais classes sociais. Assim, a experiência do trabalho (em atividades diversas), associada aos estudos dos fundamentos teóricos do trabalho e à formação escolar, e ainda aos exercícios físicos e militares, representariam um salto na formação dos trabalhadores, pois imporiam fortes elementos contrários à empobrecedora formação decorrente das condições de trabalho capitalistas.

Os dois conceitos, no entanto, apesar de apresentarem esse traço distintivo, se complementam. Na verdade, não há uma dissociação do tipo: a politecnia se realiza no âmbito das relações burguesas ao passo que a omnilateralidade apenas se realiza com a superação destas relações. Ambas são realizações da práxis revolucionária que em graus diferentes se manifestam em diferentes estágios históricos da vida social. A omnilateralidade, por exemplo, é uma busca da práxis revolucionária no presente, desde sempre, embora sua realização plena apenas seja possível com a superação das determinações históricas da sociedade do capital. Elementos de ruptura para com as unilateralidades burguesas são exercitados cotidianamente por meio de relações diferenciadas com a natureza, com a propriedade, com o outro, com as crianças, com as artes, com o saber, por intermédio de relações éticas de novo tipo, etc. Porém, de maneira plena, como ruptura ampla e radical, a omnilateralidade só se realiza como práxis social, coletiva e livre, pois depende da universalização das relações não-alienadas entre os indivíduos, no intercâmbio com a natureza e no intercâmbio social em geral.

Já a politecnia é claramente uma proposta que toma como ponto de partida a contribuição dos socialistas utópicos e a observação do próprio movimento material da produção capitalista, que avança com a grande indústria.

A politecnia é proposta para se realizar no presente da opressão a que estão submetidos os trabalhadores com o propósito de a eles responder. A politecnia não almeja alcançar a formação plena do homem livre, mas a formação técnica e política, prática e teórica dos trabalhadores no sentido de elevá-los na busca da sua autotransformação em classe-para-si. Portanto, a politecnia não tem como condição para sua realização a ruptura ou superação das determinações históricas da sociedade do capital.

Entre politecnia e omnilateralidade há complexas mediações colocadas pelo cotidiano da vida social alienada e estranhada. É nesse cotidiano que atua a formação politécnica, potencialmente capaz de elevar as classes trabalhadoras a um patamar superior de compreensão de sua própria condição social e histórica. Aí atua a práxis revolucionária, principal ação político-pedagógica da formação do proletariado como sujeito social transformador. Nesse processo são gestados elementos que deverão ser consolidados - e que só podem ser consolidados com a superação da alienação e do estranhamento – no interior das novas relações não-estranhadas. Somente a partir dessas relações é possível a formação omnilateral.

Portanto, politecnia e omnilateralidade se complementam no processo desde a formação do sujeito social revolucionário até a consolidação do Ser social emancipado. Se a omnilateralidade como formação plena é impossível – senão de forma germinal - no seio das relações estranhadas da realidade do trabalho abstrato, é precisamente neste momento que a politecnia aparece como proposta de educação de grande importância, até que se consolidem as condições históricas de possibilidade de realização plena da omnilateralidade. A politecnia é a formação dos trabalhadores no âmbito da sociedade capitalista que, unida aos outros elementos da proposta marxiana de educação, deve encontrar o caminho entre a existência alienada e a emancipação humana em que se constrói o homem omnilateral.

Manacorda (1991), dentro da sua rica contribuição para o estudo do problema da educação em Marx, apresenta uma possibilidade diferente de entendimento do conceito de omnilateralidade. Para o autor, por exemplo, não aparece claramente estabelecida a distinção apontada aqui entre omnilateralidade e politecnia ou educação tecnológica, como ele prefere.

A própria consideração das condições históricas para a realização da omnilateralidade não aparece claramente estabelecida. Nos Manuscritos de 1844, essas condições históricas aparecem nos seguintes termos:
Así también la superación positiva de la propiedad privada, es decir, la apropriación sensible de la esencia y la vida humanas, del hombre objetivo, de las obras humanas para e por el hombre, no debe concebirse simplemente en el sentido del poseer o del tener. El hombre se apropia su esencia omnilateral de un modo omnilateral, es decir, como un hombre total. Cada uno de sus comportamientos humanos ante el mundo, la vista, el ódio, el olfato, el gusto, el tacto, el pensar, el intuir, el percibir, el querer, el actuar, el amor, en una palabra, todos los órganos de su individualidad, como órganos que son inmediatamente en su forma en cuanto órganos cumunes, representan, en su comportamiento objetivo o en su comportamiento hacia el objeto, la apropiación de éste. La apropiación de la realidad humana, su comportamiento hacia el objeto, es el ejercicio de la realidad humana” (Marx e Engels, 1987, p. 620, grifos do autor).
Quanto ao exposto, vejamos o que afirma Manacorda (1991, p. 82) a respeito de um comentário elogioso de Marx, presente n’O Capital, em relação a John Bellers, por ter este autor defendido desde os fins do século XVII a superação da educação e da divisão do trabalho da época por formarem indivíduos limitados:

Eis aí um homem educado com doutrinas não ociosas, com ocupações não estúpidas, capaz de livrar-se da estreita esfera de um trabalho dividido. Trata-se do tipo de homem onilateral que Marx propõe, superior ao homem existente...
Ora, como se observa claramente, o destaque de Manacorda está na ‘educação em doutrinas não ociosas’, nas ‘ocupações não estúpidas’ e na ‘estreita esfera do trabalho dividido’, portanto, em dimensões dos campos do ‘fazer’ e do ‘saber’ que não necessariamente rompem com a sociabilidade estranhada. O indivíduo alienado/estranhado pode alcançar tudo isso a que Manacorda se refere mesmo sem atingir o ponto mais elevado da condição do homem livre que se reconhece no seu trabalho e na ampla coletividade livre.
Os comentários elogiosos de Marx a indivíduos dotados de talento criativo especial muitas vezes são tomados como referência de modelos de formação, por exemplo, quando Marx enaltece o relojoeiro Watt, o barbeiro Arkwright e o artífice de ourivesaria Fulton por terem descoberto, respectivamente, a máquina a vapor, o tear e o navio a vapor (Marx, 1989, p. 559). Esse reconhecimento da capacidade inventiva acima da média ou ao talento especial está longe de caracterizar uma formação omnilateral.

Esse tipo de capacidade criativa individual sempre existiu na história da humanidade. Em todas as épocas houve homens e mulheres cuja competência inventiva ultrapassava a média de seu tempo, mas não é a isto que se refere o conceito de omnilateralidade de Marx, ele remete ao campo vasto, complexo e variado das dimensões humanas: ética, afetiva, moral, estética, sensorial, intelectual, prática; no plano dos gostos, dos prazeres, das aptidões, das habilidades, dos valores etc., que serão propriedades da formação humana em geral, desenvolvidas socialmente, portanto, não correspondem à genialidade de um indivíduo desenvolvido num determinado sentido especial ou ainda que seja em sentidos diversos.
Na consideração de Manacorda o conceito de omnilateralidade representa uma formação mais ampla, mais avançada, mas não antagônica ao metabolismo do capital, por isto, talvez, não haja necessidade da consideração das premissas materiais da construção do homem omnilateral - a criação de novas bases sociais que permitam o livre desenvolvimento das potencialidades humanas.
--------------------------------------------------------------------------------
Para saber mais

MANACORDA, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez, 1991.
MARX, K. O Capital - Para a Crítica da Economia Política. 13a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, 6 vols.
________. Grundrisse 1857-1858. In: MARX e ENGELS. Obras fundamentales. México - DF: Fondo de Cultura económica, 1985, vols. 6-7.
MARX e ENGELS. Escritos de juventud. In: MARX e ENGELS Obras fundamentales:. 1ª. Reimpresión. México - DF: Fondo de Cultura Econômica, 1987, vol. 1.
NOGUEIRA, M. A. Educação, saber, produção em Marx e Engels. São Paulo: Cortez, 1990.
NOSELLA, P. Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores: para além da formação politécnica. I Encontro Internacional de Trabalho e Perspectivas de Formação dos Trabalhadores. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 07 a 09 de setembro de 2006.
SAVIANI, D. Trabalho e Educação – Fundamentos histórico- ontológicos da relação trabalho e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, Anped, v.12, n.34, jan.-abr., 2007
SOARES, R. Entrevista com Mário A. Manacorda. Revista Novos Rumos. Ano 19, nº. 41, 2004.
SOUSA Jr., J. de. Sociabilidade e Educação em Marx. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da UFC, Fortaleza, 1994.
________. Politecnia e onilateralidade em Marx. Trabalho & Educação. Belo Horizonte: NETE, jan/jul, 1999, n. 5, p. 98-114.