sexta-feira, 2 de abril de 2010

Estado e Sociedade Civil em Hegel

Por Ricardo George em 04/02/2010


1. Sociedade Civil em Hegel
Hegel foi o primeiro a desenvolver uma conceitografia em torno do termo Sociedade Civil e a estabelecer os limites existentes entre esta e o Estado, ou seja, foi o primeiro a pontuar a diferença existente entre Estado e Sociedade Civil preocupando-se em destacar a cada instância sua própria esfera de ação.
Assim, temos que a filosofia política de Hegel, “filosofia do espírito objetivo” ou “filosofia do direito”, apresenta-nos uma organização sistemática da ação humana e de suas obras na história: as “objetivações” do espírito. A ação do homem articula-se, segundo Hegel, em três níveis: família, sociedade civil e Estado. Para nosso propósito, interessam-nos os dois últimos: sociedade e Estado. Toda ação humana é movida por interesses dirigidos à obtenção de bens específicos. Sem interesse não há ação. O que caracteriza e diferencia a sociedade civil e o Estado é, para Hegel, a natureza, particular ou geral, do interesse que move os homens à ação ou do bem que buscam por meio dela. As ações que derivam de um interesse particular dão origem à sociedade civil. E se inscrevem nela. Por outro lado, o Estado é produto de uma ação que obedece ao interesse geral de toda a coletividade. Dirige-se ao bem universal. Este princípio de distinção entre sociedade civil e Estado é, de um ponto de vista puramente metodológico, útil para estabelecer a diferença entre o social e o político. Hegel denomina a sociedade civil, também, de “sistema das necessidades”. Surge da dinâmica imposta pela satisfação das necessidades particulares. A ação que conduz das necessidades à sua satisfação gera um fluxo de nexos recíprocos entre os homens e cria um nível específico de interação e comunicação: a sociedade civil. Nas palavras de Hegel:
“Contém a Sociedade Civil três momentos: A) A mediação da carência e a satisfação dos indivíduos pelo seu trabalho e satisfação de todos os outros: é o sistema de carências; B) A realidade do elemento universal de liberdade implícito neste sistema é a defesa da propriedade pela justiça; C) A preocupação contra o resíduo de contingência destes sistemas e a defesa dos interesses particulares como de administração e pela corporação” (Hegel, 1997, p.173)

De modo que para Hegel se impõe nesse contexto a necessidade individual, a questão da propriedade e do trabalho. Para o filósofo de Berlim é graças à propriedade que o indivíduo se insere no corpo social e jurídico. Emerge, portanto, a propriedade como momento destacado do desenvolvimento do espírito humano, pois a mesma destaca-se como porta de inserção dos indivíduos na vida legal. Hegel entende que, nesse contexto, o indivíduo necessita trabalhar para satisfazer suas necessidades e incrementar sua propriedade. Contudo, ninguém pode satisfazer sozinho, mediante seu próprio trabalho, todas as suas necessidades. Assim, o que produz e possui, necessita do outro e vice-versa.
Assim, temos que todos passam a carecer dos produtos do trabalho alheio. Desse modo, através do mercado, desenvolvem-se vínculos de interdependência generalizada entre todos os membros de uma coletividade. Esse sistema de interdependência é dinâmico. O trabalho transforma permanentemente os meios de satisfação das necessidades, as mercadorias (tanto os “meios de produção” quanto os bens de consumo). Estes, por sua vez, vão modificando as necessidades. Engendra-se, então, uma dialética permanente entre trabalho, meios de satisfação e necessidades (e entre oferta e procura, segundo os economistas), que confere peculiar dinamismo à sociedade civil . A produção, a distribuição, o intercâmbio e o consumo de mercadorias, objeto da economia política clássica, configuram este sistema que põe as necessidades de uns em conexão com os meios para satisfazê-las, possuídos por outros.
De acordo com o tipo de atividade econômica que desempenha, a população se divide, segundo Hegel, em três grandes “massas” ou “classes”. Obviamente seu conceito de classe pouco tem a ver com o de Marx e se aproxima mais ao de estamento da sociedade medieval. As três classes, ou estamentos, são: a substancial, formada pelos agricultores: a geral, constituída pela burocracia do Estado; e a intermediária ou dos industriais.
Para Hegel, cada um desses estamentos oferece uma contribuição específica à satisfação das necessidades sociais. Tem sua identidade, seus próprios costumes e sua ética. A identidade de cada estamento, e seu caráter complementar, é um elemento fundamental da coesão e da coerência da sociedade civil hegeliana.
Por fim, nosso objetivo primeiro de definir a Sociedade Civil em Hegel parece estar minimamente realizado, na medida em que a reconhecemos como o momento intermediário entre a família e o Estado, representando esta, na categoria da Eticidade; o momento negativo, ou seja, a fase do desenvolvimento histórico em que ocorre a dissolução da unidade familiar . Por conseguinte podemos concluir sobre a sociedade civil em Hegel que:
a) O primeiro princípio da sociedade civil é a pessoa concreta com suas necessidades e busca de satisfação da mesma via trabalho;
b) O segundo princípio é a Universalidade, que deriva do primeiro, uma vez que a particularidade, em busca de satisfazer seu egoísmo, entra em relação com outras particularidades. Sendo esta a condição de efetivação de seus fins.
c) Na sociedade civil cada um é um fim para si – embora almeje o outro, que aparece como meio para efetivação dos fins desejados, o que acaba por gerar uma dependência universal.
d) O homem da sociedade civil ainda não é o homem racional, é o homem do trabalho, em virtude da necessidade. Por isto, a sociedade mantém uma relação finita, própria do entendimento, isto é, unidade externa e não interna das pessoas. Cada indivíduo é tido como fim e isto é específico da esfera econômica – pelo qual o diverge da esfera política.
e) O homem é ser carente que produz e consome.
f) No tocante à dimensão política o homem é um ser portador de direitos universais, não existindo um direito natural. Portanto, todo direito é positivo “o sujeito do direito não é um homem natural, mas o homem do mundo da cultura que alcança o reconhecimento universal”
g) É o momento que antecede a realização da Razão e da Liberdade: o Estado.

2. O Estado em Hegel

Hegel pretendeu restabelecer o reinado da razão, uma razão ampliada, na qual coubessem todas as obras da criação do espírito humano - arte, religião, cultura, sistemas políticos - na história, cujo sentido específico ele procurava discernir. Na expressão de Châtelet, "a razão, que até então era da ordem do discurso, ou dessa ou daquela pessoa privada, tornava-se apanágio da sociedade inteira" (Châtelet, 1994, p. 116). Châtelet explicitou o porquê de falar desse apanágio. Antes dos gregos os homens eram homens, mas viviam sem pensar na liberdade; o conjunto da população era dominado, embora houvesse entre eles alguns homens livres, os chefes (Châtelet,1994,p. 114). Para Hegel, a razão serviu de instrumento de compreensão entre esses diversos homens livres, sendo assim construído o projeto do discurso racional. Mas, sobreveio a decadência dessa tese (gregos), e se afirmou a antítese como superação (os romanos). E foram sucedendo diferentes superações. Esse devir, o devir como tal, é essencialmente dramático: para desempenhar o seu papel na história, um povo é até mesmo obrigado a vencer pela violência a figura que o precede. Assim que, finalmente, com o herói, Napoleão Bonaparte, e com as transformações após o seu fracasso, estabeleceu-se o Estado moderno (Châtelet, 1994: p. 114-6). Segundo Hegel, o Estado moderno é a realização da razão - razão, agora, como apanágio da sociedade inteira .
Para Hegel, o Estado de Napoleão era a realização da razão. Contudo, há um texto extraído do Princípio da filosofia do direito, obra de maturidade de Hegel, que indica os seus cuidados tanto por pensar a universalidade e o absoluto como por considerar a particularidade. Alcançava ele um equilíbrio melhor, dir-se-ia capaz de corrigir a pura imposição estatal, implicada em saber absoluto ou em verdade, concentrados numa forma de Estado:

"A essência do Estado moderno consiste na união da universalidade com a total liberdade da particularidade e da prosperidade dos indivíduos, de modo que, por um lado, o interesse da família e da sociedade civil deve ajustar-se ao Estado, mas, por outro, a universalidade da finalidade não pode progredir sem o saber e o querer da particularidade, que deve conservar o seu direito" (apud. Châtelet, 1994: p. 116; o grifo é nosso)”.

Na “Filosofia do Direito” de Hegel, o Estado aparece como o fim da atividade da vida ética de uma comunidade (que une família e sociedade civil). Em outras palavras, a forma estatal tem primazia ontológica enquanto “efetividade da vontade substancial, efetividade que ela tem na autoconsciência particular erguida à universalidade do Estado”. Desse modo, o conceito de Estado não surge somente como aparato institucional, mas como a forma que efetiva a realização social (finita) plenamente – isto é, que agrega toda a vida ética. Consoante Hegel:

“ O Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade” (HEGEL, 1997, §257).

Daí decorre que a “realidade da ideia ética” nada mais é ...

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