terça-feira, 22 de março de 2011

O Valor da Filosofia

Bertrand Russell

Tendo agora chegado ao término de nossa breve e incompletíssima revisão dos problemas da filosofia, será conveniente considerar, para concluir, qual é o valor da filosofia e por que ela deve ser estudada. É da maior importância considerar esta questão, em vista do fato de que muitos homens, sob a influência da ciência e dos negócios práticos, propendem a duvidar se a filosofia é algo melhor que inocente mas inútil passatempo, com distinções sutis e controvérsias sobre questões em que o conhecimento é impossível.

Esta visão da filosofia parece resultar, em parte, de uma concepção errada dos fins da vida humana e em parte de uma concepção errada sobre o tipo de bens que a filosofia empenha-se em buscar. As ciências físicas, por meio de invenções, é útil para inumeráveis pessoas que a ignoram completamente; e por isso o estudo das ciências físicas é recomendável não somente, ou principalmente, por causa dos efeitos sobre os estudantes, mas antes por causa dos efeitos sobre a humanidade em geral. É esta utilidade que faz parte da filosofia. Se o estudo de filosofia tem algum valor para outras pessoas além de para os estudantes de filosofia, deve ser somente indiretamente, através de seus efeitos sobre as vidas daqueles que a estudam. Portanto, é em seus efeitos, se é que ela tem algum, que se deve procurar o valor da filosofia.

Mas, além disso, se não quisermos fracassar em nosso esforço para determinar o valor da filosofia, devemos em primeiro lugar libertar nossas mentes dos preconceitos dos que são incorretamente chamados homens práticos. O homem prático, como esta palavra é freqüentemente usada, é alguém que reconhece apenas necessidades materiais, que acha que o homem deve ter alimento para o corpo, mas se esquece que é necessário prover alimento para o espírito. Se todos os homens estivessem bem; se a pobreza e as enfermidades tivessem já sido reduzidas o mais possível, ainda ficaria muito por fazer para produzir uma sociedade verdadeiramente válida; e até no mundo existente os bens do espírito são pelo menos tão importantes quanto os bens materiais. É exclusivamente entre os bens do espírito que o valor da filosofia deve ser procurado; e somente aqueles que não são indiferentes a esses bens podem persuadir-se de que o estudo da filosofia não é perda de tempo.

A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos preconceitos, e de nossas crenças. Mas não se pode dizer, no entanto, que a filosofia tenha tido algum grande êxito na sua tentativa de fornecer respostas definitivas a seus problemas. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogia, a um historiador, ou a qualquer outro cientista, que definido corpo de verdades foi estabelecido pela sua ciência, sua resposta durará tanto tempo quanto estivermos dispostos a lhe dar ouvidos. Mas se fizermos essa mesma pergunta a um filósofo, ele terá que confessar, se for sincero, que a filosofia não tem alcançado resultados positivos tais como tem sido alcançados por outras ciências. É verdade que isso se explica, em parte, pelo fato de que, mal se torna possível um conhecimento preciso naquilo que diz respeito a determinado assunto, este assunto deixa de ser chamado de filosofia, e torna-se uma ciência especial. Todo o estudo dos corpos celestes, que hoje pertence à Astronomia, se incluía outrora na filosofia; a grande obra de Newton tem por título: Princípios matemáticos da filosofia natural. De maneira semelhante, o estudo da mente humana, que era uma parte da filosofia, está hoje separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Assim, em grande medida, a incerteza da filosofia é mais aparente do que real: aquelas questões para as quais já se tem respostas positivas vão sendo colocadas nas ciências, ao passo que aquelas para as quais não foi encontrada até o presente nenhuma resposta exata, continuam a constituir esse resíduo a que é chamado de filosofia.

Isto é, no entanto, só uma parte do que é verdade quanto à incerteza da filosofia. Existem muitas questões ainda - e entre elas aquelas que são do mais profundo interesse para a nossa vida espiritual - que, na medida em que podemos ver, deverão permanecer insolúveis para o intelecto humano, a menos que seus poderes se tornem de uma ordem inteiramente diferente daquela que são atualmente. O universo tem alguma unidade de plano e objetivo, ou ele é um concurso fortuito de átomos? É a consciência uma parte permanente do universo, dando-nos esperança de um aumento indefinido da sabedoria, ou ela não passa de transitório acidente sobre um pequeno planeta, onde a vida acabará por se tornar impossível? São o bem e o mal importantes para o universo ou somente para o homem? Tais questões são colocadas pela filosofia, e respondidas de diversas maneiras por vários filósofos. Mas, parece que se as respostas são de algum modo descobertas ou não, nenhuma das respostas sugeridas pela filosofia pode ser demonstrada como verdadeira. E, no entanto, por fraca que seja a esperança de vir a descobrir uma resposta, é parte do papel da filosofia continuar a examinar tais questões, tornar-nos conscientes da sua importância, examinar todas as suas abordagens, mantendo vivo o interesse especulativo pelo universo, que correríamos o risco de deixar morrer se nos confinássemos aos conhecimentos definitivamente determináveis.

Muitos filósofos, é verdade, sustentaram que a filosofia poderia estabelecer a verdade de certas respostas a tais questões fundamentais. Eles supuseram que o que é mais importante no campo das crenças religiosas pode ser provado como verdadeiro por meio de estritas demonstrações. A fim de julgar tais tentativas, é necessário fazer uma investigação sobre o conhecimento humano, e formar uma opinião quanto a seus métodos e suas limitações. Sobre tais assuntos é insensato nos pronunciarmos dogmaticamente. Porém, se as investigações de nossos capítulos anteriores não nos induziram ao erro, seremos forçados a renunciar à esperança de descobrir provas filosóficas para as crenças religiosas. Portanto, não podemos incluir como parte do valor da filosofia qualquer série de respostas definidas a tais questões. Mais uma vez, portanto, o valor da filosofia não depende de um suposto corpo de conhecimento definitivamente assegurável, que possa ser adquirido por aqueles que a estudam.

O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época e do seus país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica nosso sentimento de admiração, ao mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar.

Além de sua utilidade ao mostrar insuspeitadas possibilidades, a filosofia tem um valor - talvez seu principal valor - por causa da grandeza dos objetos que ela contempla, e da liberdade proveniente da visão rigorosa e pessoal resultante de sua contemplação. A vida do homem reduzido ao instinto encerra-se no círculo de seus interesses particulares; a família e os amigos podem ser incluídos, mas o resto do mundo para ele não conta, exceto na medida em que ele pode ajudar ou impedir o que surge dentro do círculo dos desejos instintivos. Em tal vida existe alguma coisa que é febril e limitada, em comparação com a qual a vida filosófica é serena e livre. Situado em meio de um mundo poderoso e vasto que mais cedo ou mais tarde deverá deitar nosso mundo privado em ruínas, o mundo privado dos interesses instintivos é muito pequeno. A não ser que ampliemos o nosso interesse de maneira a incluir todo o mundo externo, ficaremos como uma guarnição numa praça sitiada, sabendo que o inimigo não a deixará fugir e que a capitulação final é inevitável. Não há paz em tal vida, mas uma luta contínua entre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De uma maneira ou de outra, se pretendemos uma vida grande e livre, devemos escapar desta prisão e desta luta.

Uma válvula de escape é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica não divide, em suas investigações mais amplas, o universo em dois campos hostis: amigos e inimigos, aliados e adversários, bons e maus; ela encara o todo imparcialmente. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o restante do universo é semelhante ao homem. Toda aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu, mas este alargamento é melhor alcançado quando não é procurado diretamente. Este alargamento é obtido quando o desejo de conhecimento é somente operativo, por um estudo que não deseja previamente que seus objetos tenham este ou aquele caráter, mas adapte o Eu aos caracteres que ele encontra em seus objetos. Esse alargamento do Eu não é obtido quando, tomando o Eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu que seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece estranho. O desejo para provar isto é uma forma de egotismo, é um obstáculo para o crescimento do Eu que ele deseja, e do qual o Eu sabe que é capaz. O egotismo, na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para seus próprios fins; assim, ele faz do mundo menos caso do que faz do Eu, e o Eu coloca limites para a grandeza de seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos do não-Eu, e por meio de sua grandeza os limites do Eu são ampliados; através da infinidade do universo, a mente que o contempla participa um pouco da infinidade.

Por esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do Eu com o não-Eu. Como toda união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo em conformidade com o que descobrimos em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação a visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é construção humana; que espaço e tempo, e o mundo dos universais, são propriedades da mente, e que, se existe alguma coisa que não seja criada pela mente, é algo incognoscível e de nenhuma importância para nós. Esta visão, se nossas discussões precedentes forem corretas, não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo aquilo que lhe dá valor, visto que ela aprisiona a contemplação do Eu. O que tal visão chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas uma série de preconceitos, hábitos e desejos, que compõem um impenetrável véu entre nós e o mundo para além de nós. O homem que se compraz em tal teoria do conhecimento humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por receio de que fora dele sua palavra não seja lei.

A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra sua satisfação no próprio alargamento do não-Eu, em toda coisa que engrandece os objetos contemplados, e desse modo o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo aquilo que é pessoal e privado, tudo o que depende do hábito, do auto-interesse ou desejo, deforma o objeto, e, portanto, prejudica a união que a inteligência busca. Levantando uma barreira entre o sujeito e o objeto, as coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O livre intelecto enxergará assim como Deus poderia ver: sem um aqui e agora; sem esperança e sem medo; isento das crenças habituais e preconceitos tradicionais: calmamente, desapaixonadamente, com o único e exclusivo desejo de conhecimento - conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo quanto é possível a um homem alcançar. Por isso, o espírito livre valorizará mais o conhecimento abstrato e universal em que não entram os acidentes da história particular, que ao conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente - como tal conhecimento deve ser - de um ponto de vista pessoal e exclusivo, e de um corpo cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quanto revelam.

A mente que se tornou acostumada com a liberdade e imparcialidade da contemplação filosófica preservará alguma coisa da mesma liberdade e imparcialidade no mundo da ação e emoção. Ela encarará seus objetivos e desejos como partes do Todo, com a ausência da insistência que resulta de considerá-los como fragmentos infinitesimais num mundo em que todo o resto não é afetado por qualquer uma das ações dos homens. A imparcialidade que, na contemplação, é o desejo extremo pela verdade, é aquela mesma qualidade espiritual que na ação é a justiça, e na emoção é o amor universal que pode ser dado a todos e não só aos que são considerados úteis ou admiráveis. Assim, a contemplação amplia não somente os objetos de nossos pensamentos, mas também os objetos de nossas ações e nossos sentimentos: ela nos torna cidadãos do universo, não somente de uma cidade entre muros em estado de guerra com tudo o mais. Nesta qualidade de cidadão do mundo consiste a verdadeira liberdade humana, que nos tira da prisão das mesquinhas esperanças e medos.


Enfim, para resumir a discussão do valor da filosofia, ela deve ser estudada, não em virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam nossa concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo porque através da grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também se torna grande, e se torna capaz daquela união com o universo que constitui seu bem supremo.

Bertrand Russell - 1912, Oxford University Press, 1959, reimpresso em 1971-2 - Tradução: Jaimir Conte

Os indiferentes

O texto abaixo é de Antonio Gramsci (1891-1937) socialista italiano que foi preso pela polícia fascista de Mussolini. Morreu na prisão, mas nos deixou uma obra política fundamental: Os "Cadernos do Cárcere". O texto em questão, no entanto, foi escrito ainda em sua juventude para a revista "Cittá Futura" (“Cidade Futura”) – redigido em fevereiro de 1917. A fonte desta postagem que faço uso aqui e recomendo a leitura, para maiores informações, é: http://www.espacoacademico.com.br/064/64tc_gramsci.htm

Boa leitura!

Os indiferentes
por Antonio Gramsci




Odeio os indiferentes.Acredito que viver, tal qual Friederich Hebbe[2], quer dizer ser partigiani.[3] [N.doT.: militante, companheiro e/ou "partidário"] Não podem existir os apenas homens, os estranhos à cidade. Quem vive verdadeiramente não pode não-ser concidadão, e não parteggiare. [N.doT.: militar, compartilhar e/ou "tomar partido"] Indiferença é abulia, parasitismo, velhacaria; não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a cadeia de chumbo ("palla di piombo") para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam amiúde os mais esplendorosos entusiasmos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor que o peito dos seus guerreiros; porque engole em seus pântanos lamacentos os seus assaltantes, os dizima e desencoraja e, às vezes, faz com que desistam da ação heróica.

A indiferença opera poderosamente na história. Opera passivamente, mas opera. É a fatalidade; é aquilo com o que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que derruba os planos mais bem construídos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência, e a destroça. Aquilo que acontece – o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar – não se deve tanto à iniciativa dos poucos que operam quanto à indiferença, ao absenteísmo de muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto, sobretudo, porque a massa dos homens abdica de sua vontade, deixa fazer, deixa enlaçar os nós que, depois, só a espada pode cortar, deixa promulgar as leis que depois só a revolta faz revogar, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma insurreição pode derrubar. A fatalidade que parece dominar a história não é outra coisa que a aparência ilusória desta indiferença, deste absenteísmo; fatos amadurecidos à sombra – a poucas mãos – não-submetidos a qualquer controle, que tecem a tela da vida coletiva, e a massa dos homens ignora, porque isso não a preocupa. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões estreitas, de alcance imediato, de ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos; e a massa dos homens ignora, porque isso não a preocupa. Mas os fatos que amadurecem vêm à superfície; a tela tecida à sombra vem à tona, e então parece ser a fatalidade a arrastar a tudo e a todos, parece que a história não é mais do que um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, do qual todos são vítimas – o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem esteve ativo e o indiferente. Este último se irrita, desejaria livrar-se às conseqüências, desejaria deixar claro que não assentiu, que não é responsável. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum – ou poucos – se pergunta: se tivesse eu também cumprido o meu dever, se tivesse buscado fazer valer a minha vontade, meu juízo, teria acontecido o que aconteceu? Mas nenhum – ou poucos – o atribui à sua indiferença, ao seu ceticismo; a não ter dado seus braços e atividade àqueles grupos de concidadãos que, para evitar esse mesmo mal, combatiam; que a procurar tal bem se propunham.

A maioria deles, ao contrário, diante de acontecimentos consumados, prefere falar de falhas ideais, de programas definitivamente esmagados e de outras fanfarronices semelhantes. Recomeçam assim o seu absenteísmo de qualquer compromisso. E já não por não verem claramente as coisas e, por vezes, não serem capazes de divisar belíssimas soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que – embora requerendo uma ampla preparação e tempo – são todavia tão urgentes quanto. Mas essas soluções são belissimamente inférteis; mas essa contribuição à vida coletiva não é animada por qualquer luz moral: é produto de curiosidade intelectual, e não do senso pungente de um compromisso histórico que quer a todos ativos na vida, que não admite desconhecimentos e indiferenças de nenhuma espécie.

Odeio os indiferentes também porque me dá nojo o seu choramingo de eternos inocentes. Peço contas a cada um deles pelo balanço do que a vida lhes pôs e põe, cotidianamente, do que fizeram e, especialmente, do que não fizeram. E sinto poder ser inexorável, não dever desperdiçar a minha compaixão, não repartir com eles as minhas lágrimas. Sou partigiano, vivo, sinto nas viris consciências de meus companheiros já pulsar a atividade da cidade futura que estamos construindo. E, nesta, a cadeia social não pesa sobre poucos; qualquer coisa que acontece não se deve ao acaso, à fatalidade, mas é obra inteligente dos concidadãos. Não há nesta ninguém à janela observando enquanto os poucos se sacrificam, abnegados no sacrifício; e tampouco há quem esteja entocaiado à janela e que pretenda usufruir o pouco bem que a atividade de poucos busca, e afogue a sua desilusão injuriando o sacrificado, o abnegado, porque não teve êxito na sua tentativa.



Vivo, sou partigiano. Por isso odeio quem não parteggia, odeio os indiferentes.



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[1] Gramsci, Antonio (1917). Indifferenti, In: Cittá Futura, 11/feb./1917 (In: Scritti Giovanili 1914-1918. Torino: Einaudi, 1972). Tradução livre de Roberto Della Santa Barros. Cotejada com a versão de P. C. U. Cavalcanti (Convite à Leitura de Gramsci. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985) e conferida junto à tradução de C. N. Coutinho (Escritos Políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004).

[2] Friedrich Hebbel – In: Vivere significa esser partigiani – publicado na edição do jornal Grido del Popolo (“Grito do Povo”) de 27 de maio de 1916. Hebbel (1813-1863) – dramaturgo e poeta alemão – registra tal asseveração em seus Diários (reflexão de número 2.127), onde desenvolve reflexão eminentemente filosófica.Gramsci vale-se – no artigo do jornal Cittá Futura – de um enunciado próprio do pensamento social de Hebbel, nutrindo-se do espírito de reflexões como: “Alla gioventù si rimprovera spesso di credere che il mondo cominci appena con essa. Ma la vecchiaia crede anche più spesso che il mondo cessi con lei. Cos’è peggio?” (“À juventude se censura amiúde por acreditar que o mundo começa apenas com a mesma. Mas os velhos acreditam ainda mais piamente que o mundo cessa com eles. O que é pior?”). Outro aforismo da mesma matriz – perfeitamente compreensível para os lusófonos, daqui e de todas as partes – é também bastante significativo de sua índole antideterminista: “Un prigionero è un predicatore de la libertá”.
[3] Nesta tradução livre optamos pelo (algo heterodoxo) procedimento de manter o original dos lexemas (i) partigiani, (ii) parteggiare, (iii) partigiano e (iv) parteggia; apenas cuidando destacá-los em negrito. Expliquemo-nos. As soluções encontradas na tradução de Cavalcanti são, segundo a ordem de exposição: (i) “partidários”, (ii) “[ser] partidário”, (iii) “militante” e (iv) “[toma] partido”. Coutinho, para a última ("parteggia"), utiliza a forma"se compromete". Apesar de não contribuir para qualquer prejuízo do significado geral dos mesmos, incorre-se em dois problemas centrais: arranca-se a raiz comum entre os substantivos partigiano (singular) e partigiani (plural) e o verbo parteggiare / parteggia (nas formas infinitiva e presente, respectivamente) por um lado e, por outro, perde-se a força (algo taumatúrgica) reivindicada pelo autor – em torno a tais unidades de sentido – em oposição à indifferenza e aos indifferenti, ao longo do fundamental de sua argüição histórico-filosófica. Ainda, em perspectiva sincrônico-diacrônica, a palavra ("partigiano") sedimentou-se na posterior história social italiana como símbolo da resistência antifascista – vide, por exemplo, o cancioneiro revolucionário da Itália, em especial Bella Ciao. E não se trata de um passado remoto. A figura do partigiano ("militante, companheiro, partidário") ecoou vívidamente nas avenidas de Florença (capital da Toscana, na Itália) cantado nas vozes dos mais de 1.500.000 manifestantes – de todas as partes do mundo – que acudiram à marcha contra a Guerra do Iraque durante o encerramento do I Fórum Social Europeu, em pleno ano de 2002, no alvorecer do século XXI. Ao apoderar-se de mentes e corações de milhões em movimento e, dessa forma, engrandecer a tarefa a ser realizada pelas novas gerações, o signo em questão revigora-se e se atualiza, convertendo-se em verdadeira força material – base para o aprendizado de seu "novo idioma". Como queria o poeta, tranformar a vida para, então, cantá-la. Por isso tudo: parteggia, partigiano.
"(...) o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela" (In: Marx, Karl. 1852. O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, várias edições).