domingo, 6 de junho de 2010

VERDADE E ESPAÇO PÚBLICO
EM HANNAH ARENDT

Prof. Ms. Ricardo George


A situação de um poder centralizador onde as decisões acontecem, sempre de cima para baixo, sem levar em conta a pluralidade e a liberdade dos indivíduos, foi a situação experienciada por Arendt, na Alemanha nazista. Essa experiência marcou-a, ainda mais, quando tomou consciência de Auschwitz em 1943, embora, de inicio, Hannah Arendt, que já estava fora da Alemanha, não tivesse acreditado no fato por entender que este não cabia no contexto em questão, em vista de não apresentar, segundo ela, “Qualquer objetivo militar” e por “ir de encontro a toda necessidade” contudo, o fato era real e verdadeiro e a partir daí ficava mais claro para Hannah Arendt o fato de que questões centrais da vida humana e da política estavam em xeque pelo momento histórico que se apresentava, de tal modo, que quando teve que acreditar em Auschwitz, pronuncio-se da seguinte forma:

“Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto poderia de alguma maneira se ajustar, como pode acontecer sempre na política. Mas neste caso não. Isso [a fabricação sistemática de cadáveres] nunca poderia te acontecido, (...)Auschwitz não deveria ter acontecido”

Essa experiência, por demais forte, que certamente a marcou como pessoa, também definiu seu campo de atuação, porquanto, tendo uma formação filosófica, negou-se a reflexões que se constituíssem por princípios últimos, haja vista que esse tipo de posição pode implantar, junto a outros fatores, o autoritarismo. A opinião do outro, nesse sistema, não vale nada, a ponto da vida ser ceifada por motivos de puro desatino autoritário. Hannah Arendt, chega a essa posição não de forma gratuita mas por ver que a Filosofia desde os gregos, legou a humanidade uma tradição, na qual a verdade poderia ser alcançada. Sendo assim, toda essa tradição teria de certa forma respaldado esses modelos políticos decisionistas, pois, quem tem a “verdade” não precisa pôr em debate nenhuma questão. Termos como pluralidade e espaço público passam a ser figuras de retórica, sem nenhum significado contundente, mas apenas denominações de massa conduzida pelos iluminados
É justamente contra isso que Hannah Arendt se posiciona, isto é, contra posturas que negam o espaço público, ou seja , a possibilidade dos indivíduos se articularem e discutirem propostas, fazendo valer o direito de expressão e de ação , sem medo da repressão ceifadora de vidas e liberdades. Nesse sentido, Hannah Arendt se identifica muito mais como pensadora política e, mesmo assim, não trabalha a cerca de verdades, porquanto suas teses são reflexões que, lançadas, possam ou não servir de ponto para uma reflexão, de tal modo que propagar verdade em política é sempre um risco, que cedo ou tarde poderá desembocar em autoritarismo.
Dada essa posição inicial, evidenciam-se duas questões centrais, que nos propomos aqui a refletir em torno do pensamento de Hannah Arendt:
• A questão da verdade na política
• O espaço público
A questão da verdade se põe primeiramente na disputa entre a verdade racional e a verdade fatual. A verdade racional é por excelência contemplativa chegando a ter características solipsistas , na medida que ela não pode ser comunicada, pois cada indivíduo tem que a encontrar por si mesmo. É o modelo socrático, aderido por Platão.
A grande questão da verdade racional é o que essencialmente a constitui, ou seja, ser sempiterna e trazer em si princípios que podem servir para estabilizar as questões dos homens em seu cotidiano, ou seja, surge de um passeio do filósofo pelo céu das idéias, em busca de princípios últimos e inquestionáveis, isto é, de verdades inabaláveis. Nesse sentido, a verdade racional é alcançada por espíritos especiais, que conseguem atingir um nível de reflexão suficiente para dar conta do mundo pelos princípios antes encontrados em suas reflexões. Admitir essa postura da verdade racional,contudo, é acolher um caráter aristocrático, seletor, no qual está determinado quem tem a verdade e a quem todos devem seguir. Talvez, tenha sido esse o grande equivoco da tradição filosófica, no tocante a política: pensar modelos acabados, paradigmas a serem seguidos, esvaziando a capacidade dos homens da praça de se organizarem por si próprios no processo político, sem a intervenção de uma iluminação que parta de único indivíduo.
A proposta platônica de que o bom governo da pólis ocorreria quando os reis se tornassem filósofos ou filósofos reis, é uma posição que traz, potencialmente, traços autoritários, tirânicos, ao se considerar os riscos que são enormes. Enormes porque a verdade alcançada pelo filósofo-governante não pode ser comunicada à grande massa. O que teríamos de fato seria um rebanho, crédulo e ingênuo, politicamente anulado pelo controle dessas verdades sublimes, que estariam localizadas em um indivíduo ou em uma casta especial.
É compreensível que a busca dessa verdade acabada tenha a pretensão de superar a posição sofista que sacrificava as verdades em nome de suas vitórias passageiras via argumentação. Assumir esse modelo não é a melhor saída, haja vista que nossa época nos legou outro modelo de sofista que não se satisfaz em anular argumentos, mas empreende forças para negar fatos comprometendo aquilo que é o evento histórico, situação primordial da verdade fatual, de tal modo que a luta hoje contra os sofistas continua, só que os atuais estão a usar outros alvos; de qualquer forma, utilizar modelos absolutos de uma verdade pessoal, unilateral, não é a saída.
“A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento ás custas da verdade , enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura mesmo que ás custas da realidade. Em outras palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da ação humana. O filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos fatos que destroem a própria história e sua inteligibilidade”
Pensamos que estão claras as características da verdade racional e suas implicações, de modo que outra postura de verdade totalmente antagônica agora ocupa nossa reflexão: é a verdade fatual, isto é, a verdade montada no espaço e no tempo, portanto, histórica e totalmente imersa nos negócios humanos, não tendo qualquer relação com princípios últimos e acabados.
A verdade fatual é a verdade da vida , ou seja, a verdade que corresponde à atuação do homem no espaço publico. Esta encerra como maior marca a ação, e somente ocorre quando aos indivíduos é possibilitado o direito de fala e de ação, embora muitas vezes as situações sucedam para negar isto em favor de um grupo ou indivíduo que pretenda controle total; de qualquer forma, a ação e sua ocupação histórica a demarcam diferenciando-a de qualquer verdade contemplativa.
Ainda é de se observar que nessa comparação direta entre a verdade fatual e a verdade racional, evidencia-se a fragilidade de verdade fatual, não uma fragilidade qualquer, que lhe possa trazer um abalo circunstancial, mas uma fragilidade que pode a eliminar a ponto da mesma desaparecer , visto que os acontecimentos históricos, isto é, aquilo que é da ordem dos assuntos humanos, é potencialmente mais frágil do que as teorias elaboradas pela verdade racional.
O uso do poder nesse contexto é central, na medida que fatos podem ser distorcidos e manipulados em favor de quem detém o poder. Sendo assim, podemos tranqüilamente afirmar que a verdade fatual é, sobretudo, uma verdade política. É política porque insere-se no âmbito dos negócios humanos. É política porque é presente na vida ativa e, como fato, ela é passível de mentira, de engano ardiloso para manutenção do poder, ainda que no plano dos controles e manipulações.
O que fica evidente é: a razão produz verdades que são contrariadas no patamar do erro e da ignorância, mas a verdade factual é contrariada pela mentira, na medida que esta é histórica.
“Embora, as verdades de maior importância política sejam as factuais, o conflito entre verdade e política foi descoberto pela primeira vez com respeita á verdade racional. O contrário de uma asserção racionalmente verdadeira é ou erro ou ignorância, como nas ciências, ou ilusão ou opinião como na filosofia. A falsidade deliberada a mentira cabal, somente entra em cena no domínio das afirmações factuais.”

A verdade fatual enfrenta um questionamento que é da ordem da verdade racional, ou seja, é por muitas vezes localizada como ilusão, e aqui aparecem pelo menos duas implicações. A primeira é: o poder em vigor sempre há que camuflar ou distorcer, ou, pelo menos, vai tentar realizar isso, pondo a verdade fatual no âmbito da ilusão, como algo irreal, a medida que isso o protege, pois tira o caracter da verdade factual do âmbito do evento e o situa no contexto da dúvida sem maiores evidências, ou seja, o poder aqui entra como contador da verdade, negando testemunhas e a própria história, subverte a verdade do fato em ilusão e dilui a história, pondo em risco o espaço público, onde ocorre livremente a ação. Ferido por essa distorção, o espaço público corre o risco de ser negado e desembocar em puro autoritarismo. Aí reside a segunda implicação. É válido, porém, lembrar o que nos diz Hannah Arendt: fatos e opiniões mesmo separados não são antagônicos , um completa ao outro, eles pertencem ao mesmo domínio .
Portanto, a opinião não pode contrariar o fato, de tal modo que as implicações da verdade fatual se fortalecem pelas opiniões, na medida em que o evento histórico é testemunhado, tendo por base que mesmo em uma diversidade de opiniões sobre o fato, isso não tira dele a condição de evento histórico. Assim, quando propagado, só se fortalece contra o risco de desaparecer, e o anuncio dos eventos que envolvem os negócios humanos aparece, nesse sentido, como uma garantia de verdade do mesmo, para que continue sendo discutido e analisado, embora saibamos que ao poder, com ânsia de controle, o que importa é pôr o evento no esquecimento ou minar sua credibilidade.

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