Otfried Höffe
Interesse por outros territórios culturais e linguísticos, interdisciplinaridade, mediação entre o analítico e o transcendental: estas são algumas virtudes dos filósofos alemães, segundo o catedrático de Tübingen.
Otfried Höffe é professor titular de filosofia na Universidade de Tübingen, e conhecido como um dos maiores expoentes, na Alemanha, da Filosofia Política, que enfoca o Estado e o direito, e da Filosofia Moral.
Estudioso das obras de Aristóteles e Immanuel Kant, dedica-se também a temas como Teoria do Conhecimento e Ética Aplicada (bioética, ética econômica, ética da ecologia, etc.). Autor de diversos livros e artigos, seu trabalho se destaca especialmente pela defesa de um debate intercultural e de uma ordem jurídica que, segundo ele, deve ser de natureza global, federal e subsidiária às ordens jurídicas nacionais.
Defensor da aplicação das filosofias de Aristóteles e Kant a diversos problemas atuais, o professor Höffe pensa que o estudo da filosofia deve possuir uma dimensão histórico-sistemática mais séria. Na entrevista à Deutsche Welle, ele explica algumas características de seu trabalho e da filosofia na Alemanha.
ENTREVISTA.
Deutsche Welle: Para que precisamos da filosofia ainda hoje, ou especialmente hoje?
Otfried Höffe: A filosofia se debruça sobre questões fundamentais de todo o nosso mundo, seja o mundo natural, o social ou o da linguagem. Ela se volta tanto para a vida cotidiana como para a política, a ciência, a medicina e a técnica, bem como para a música, a literatura e a arte. O contemporâneo atento vê em todas essas áreas uma quantidade tal de problemas, que a filosofia é altamente solicitada, das mais diversas maneiras.
Aqui apenas alguns exemplos: 1) Como se pode imaginar o universo antes do Big Bang? De onde vem o que existia antes dele? 2) A neurociência coloca em questão a liberdade e a responsabilidade humana? 3) Como é possível uma coexistência pacífica de culturas diferentes? 4) Como tornar humanas as megalópoles, do ponto de vista arquitetônico e social? 5) A partir de que ponto se pode dizer que a vida humana dispõe da proteção total da dignidade e dos direitos humanos?
Os temas focais na Alemanha são, por um lado, a história da filosofia em suas diferentes épocas e suas figuras de destaque – em especial Platão e Aristóteles, Kant e o Idealismo alemão, sem que se esqueçam a Alta Antiguidade e a Idade Média, o começo da Era Moderna, os clássicos anglo-americanos ou Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Edmund Husserl e Martin Heidegger.
Por outro lado, existe uma filosofia sistemática não menos intensiva e multifacetada. Entre esses dois lados há ligações estreitas, visto que um pensamento sistemático inteligente se faz inspirar pela consciência de problemas que tiveram seus predecessores, e portanto procura um diálogo com eles, em vez de se contentar com a consciência de problemas de seus contemporâneos, por vezes um tanto fortuita.
Focos da filosofia sistemática são, por exemplo, a teoria do conhecimento e a filosofia da mente, incluindo uma teoria das emoções e a análise diferencial da inteligência humana e animal. O amplo campo da filosofia prática é discutido com especial intensidade. Na ética (fundamental) discute-se o relacionamento entre eudaimonia (felicidade) e autonomia, além da fundamentação do direito, do Estado e de uma ordem jurídica global; por fim, discutem-se tópicos da ética aplicada, como a ética econômica e, mais ainda, a ética médica.
Alguns dos filósofos mais jovens são mais familiares com a tradição anglo-americana do que com as tradições alemãs, francesas ou da Antiguidade. Contudo os mais inteligentes entre eles não se curvam diante desse novo grande provincianismo – em geral, tematicamente estreito e de abordagem empírica. Eles são plenamente capazes de argumentar analiticamente, sem, no entanto, renunciar às constatações da filosofia transcendental, da fenomenologia ou da hermenêutica.
Como a filosofia apela à razão e experiência comuns a todos os humanos, ela está atada a um espaço linguístico e cultural, num sentido essencial. Do mundo germanófono derivam algumas correntes filosóficas de importância extraordinária, e pensadores excepcionais. Felizmente eles se tornaram, em razão de sua excelência, um bem comum do patrimônio filosófico global. Os textos e pensamentos de Gottfried Leibniz, Immanuel Kant e dos filósofos idealistas alemães, especificamente de Friedrich Hegel, além de Schopenhauer, Nietzsche, Husserl e Heidegger, assim como da Escola de Frankfurt, de Ludwig Wittgenstein e do positivismo lógico, são estudados e cultivados em muitos lugares do mundo.
Pode-se falar ainda hoje de uma filosofia alemã e, caso positivo, como distingui-la? Onde o senhor vê diferenças em relação a outros colegas europeus e norte-americanos?
Se sob "filosofia alemã" entendermos o pensamento praticado pelos filósofos na Alemanha e no grande espaço germanófono, o que caracteriza os mais inteligentes entre eles é: não tomarem apenas conhecimento dos textos e dos colegas em seu próprio território linguístico; terem um horizonte histórico-filosófico e sistemático bastante amplo (em virtude mesmo da prática ainda dominante da livre-docência), em vez de se entregar a uma superespecialização; estarem bem preparados para a cooperação interdisciplinar, ao menos devido à exigência de uma cadeira não filosófica, no mínimo, dentro do atual curso de Magister; por fim, mediarem criativamente entre o assim chamado "pensamento analítico" – atualmente dominante, em nível global – e o pensamento transcendental-filosófico, fenomenológico ou hermenêutico.
A Alemanha é ainda a terra da filosofia?
Uma coisa, pelo menos, é verdade: a filosofia está em grande demanda na Alemanha, de diversos pontos de vista. Foram publicados muitos textos filosóficos (livros, artigos em revistas e ensaios em grandes diários e semanários). Os filósofos estão desproporcionalmente bem representados nos debates públicos. O número de estudantes de Filosofia cresce, e os melhores entre eles são excelentes. Especialistas em Literatura, teólogos, juristas, etc., escolhem com frequência a Filosofia como disciplina complementar ou adicional. Os doutorandos e docentes de Filosofia alemães são muito bem-vindos no exterior.
Através de que o seu trabalho se diferencia do de outros filósofos alemães?
De fato, há algumas particularidades. Entre outras coisas, eu trato dos temas da filosofia prática em toda sua amplitude, desde as reflexões fundamentais – tanto éticas como da Teoria da Ação –, passando pela fundamentação do Direito e do Estado, até o vasto campo da ética aplicada, com ênfase na ética científica, técnica, ambiental, econômica e, acima de tudo, na ética biomédica. Para tal, claro, é sempre preciso se informar sobre cada um dos setores em questão.
Filósofo do direito em sua bibliotecaTambém pouco usual é o fato de eu, sobretudo na ética, recorrer à sabedoria de vida da grande literatura.
No âmbito da reflexão fundamental ética, não vejo a ética da eudaimonia (felicidade) de Aristóteles e a ética da autonomia de Kant como alternativas opostas. Antes, valorizo as múltiplas convergências e complementações, sem por isso nivelar as diferenças fundamentais; além disso mantenho-me aberto à crítica moral, da qual Friedrich Nietzsche é o ápice.
Na filosofia prática (que inclui a filosofia do direito e do Estado), dedico-me à tarefa negligenciada – desde John Rawls até Jürgen Habermas – de legitimar a autoridade coerciva relacionada aos poderes públicos.
Em nossos tempos de globalização, considero imprescindível o diálogo intercultural. Em um de meus livros, contemplo pensadores muçulmanos e judeus, indianos e chineses; em outro reúno textos de praticamente todas as épocas e culturas, inclusive discursos interculturais sobre o Direito, por exemplo, sobre a legitimação de uma ordem jurídica global federal e subsidiária.
Ao contrário da tendência de se dedicar à história sem interesses sistemáticos, mas sem explorar uma dimensão histórico-filosófica profunda, procuro uma inspiração recíproca. Ademais, levo a sério a ideia de uma filosofia verdadeiramente prática e política, e me envolvo, modo philosophico, nos debates públicos.
Como o senhor vê o trabalho da filosofia antiga nos dias de hoje? Aristóteles continua sendo sempre atual?
A filosofia, entendida como uma reflexão conceitual-argumentativa, começa com os gregos e logo alcança um tal nível de rigor conceitual, de poder analítico, profundeza especulativa e é tão saturada de experiência, que a filosofia antiga, especificamente Aristóteles, permanece um modelo raramente alcançado e quase nunca suplantado.
A atualidade de Aristóteles é tão vasta, que aqui só se podem dar uns poucos exemplos. Em primeiro lugar, citem-se as quatro máximas metódicas: assegurar os fenômenos, trabalhar nas dificuldades, reconhecer a ambiguidade dos conceitos filosóficos básicos e registrar pontos de vista alheios. São exemplares a flexibilidade e tolerância teórico-científica de Aristóteles, assim como sua excepcional curiosidade temática, que se volta sobre todo o mundo natural, social e cultural-linguístico.
Até hoje são atuais as análises de Aristóteles, por exemplo, sobre a ação responsável, a justiça, a amizade e o prazer, a antropologia política, a ambiguidade do governo e sobre as formas de Estado, incluídos os fatores da estabilidade e instabilidade.
A justiça é o tema principal da filosofia do direito? O direito é ainda uma ciência da justiça?
Não em essência, mas do ponto de vista normativo, a justiça é o tema principal da filosofia prática. Desde a positivação e codificação do Direito – um processo também impulsionado por argumentos de justiça – a jurisprudência é, numa proporção mínima, uma ciência da justiça.
De uma jurisprudência científica também faz parte uma clarificação de fundamentos, no âmbito da qual as questões relativas à justiça exercem um papel imprescindível: Por que deve existir o direito? Por que um poder coercivo faz parte do direito? Por que a separação dos poderes públicos? Por que devem existir instituições fundamentais, tais como os direitos humanos inalienáveis e a propriedade privada? Por que a relação entre os Estados também deve ser juridicamente regulada e, por conseguinte, se deve estabelecer uma ordem jurídica global (federal e subsidiária)?
Revisão: Augusto Valente
Fonte original: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,15104766,00.html , acesso em 31/05/2011