Ricardo George
Aqui temos três importantes categorias para compreender o esquema epistêmico com o qual Hannah Arendt apresenta a política, quais sejam: a memória, que tem a ver com a história; a narração, que tem a ver com a possibilidade de resgatar os eventos; e a imortalidade, que coloca a ação no mundo concreto, tornando os homens seres capazes de continuidade no tempo. Se bem observarmos, perceberemos que há uma ligação entre as categorias, na qual uma possibilita a outra. Isso parece evidenciar-se quando notamos que, para a narração ocorrer, temos de fazer uso da memória. Assim, a imortalidade se impõe como aquilo que está sendo perpetuado no tempo pela memória e pela narração.
A noção que teria de ser superada, nesse contexto, é a noção de eternidade, tendo em vista que a mesma lança fora dos negócios humanos toda e qualquer ação, isto é, o que vale para o princípio da eternidade é aquilo que se vai conquistar em outra dimensão, como, por exemplo, na contemplação, não sendo preciso deixar nada aos pósteros, não importando legar nenhuma forma de permanência e de imortalidade. Em outras palavras, a experiência do eterno conduz os indivíduos a uma experiência singular, portanto, diretamente antagônica à pluralidade.[i] Esta não teria maior significado no esquema que se estruturasse no eterno.
Tudo isso mostra a clara distinção entre vida ativa e vida contemplativa, ou seja, entre um modus vivendi encarnado na vida concreta, na teia de relações humanas, e outro situado fora disso:
O fator decisivo é que a experiência do eterno, diferentemente da experiência do imortal, não corresponde a qualquer tipo de atividade nem pode nela ser convertida, visto que até mesmo a atividade do pensamento, que ocorre dentro de uma pessoa através de palavras, é obviamente não apenas inadequada para propiciar tal experiência, mas interromperia e poria a perder a própria experiência (ARENDT: 2001 p. 29).
Concluímos que a contemplação é a grande estrutura de demonstração da experiência do eterno, indo de encontro à imortalidade, na media em que a teoria se apresenta contrária à ação. A descoberta do eterno pelos filósofos os tirou da polis e os puseram em dúvida em relação à mesma. Estes optaram pelo confinamento no mundo da theoria, da contemplação, em detrimento da vida política e imortal da polis.
A opção de Hannah Arendt por narrar os fatos, isto é, contar “histórias” se dá na proporção em que ela percebe não mais ser possível explicar o novo que acomete o contexto político de então. O totalitarismo aparece, e a tradição não tem categorias suficientes para explicá-lo, visto que o mesmo não é fruto de evento político do passado nem, muito menos, uma nova versão da tirania ou do absolutismo, mas é uma novidade política que, nas palavras de Bruehl, provocou uma verdadeira “diáspora mental”, ou seja, conduziu a todos a uma encruzilhada que não tinha mais a direção conceitual segura para trilhar, mas colocou em crise a tradição, seus conceitos, suas doutrinas e sua verdade. Para Hannah Arendt, a saída é contar “histórias” e narrar fatos. Não há espaço no presente contexto para uma explicação essencialista ou universalista. O filósofo, nesse contexto, tem de se tornar um storyteller, pois não adianta mais partir de uma universalidade dada aprioristicamente, uma vez que o sentido só emergirá na medida em que o pensamento se debruçar sobre os acontecimentos (AGUIAR, In: BIGNOTTO; JARDIM, 2003, p. 216.)
A narração, nesse contexto, surge como protagonista do processo de compreensão dos eventos na busca de entender o que foi vivido e, isso, é mais forte do que a busca por conceitos prontos, aprioristicamente dados.
Em outras palavras, as experiências vividas só podem ser equacionadas no nível do particular, ou seja, cada experiência como única carece de uma narração singular. As explicações universalistas perdem nesse contexto, espaço e sentido. A saída que Arendt encontrou foi narrar à experiência, isto é, buscou o recurso da memória e da narração para exaltar a natalidade e contrapor-se à mortalidade trazida pela experiência totalitária. Exalta-se a natalidade na medida em que a narração dos fatos constrói sentido para as novas gerações que se inserem em um mundo pronto, formatado. Contudo, a partir do que recebem, irá transformá-lo. Sendo assim, narrar esses eventos é também demonstrar a importância de se preservar o mundo público, de se preservar a ação e a vida plural.
A posição da ação no pensamento de Arendt, não é pensada a partir de um padrão, o que fez com que a autora compreendesse o seu trabalho como uma narrativa do grande “jogo do mundo”. Contar a ”história” é a única maneira de a ação permanecer na memória dos homens e de os feitos e as palavras humanas adquirirem dignidade por parte do pensamento. Ao se transformar numa storyteller, Arendt rejeita a posição de um ponto de vista arquimediano, como uma postura apropriada para o ato de filosofar e nos insere em um pensamento “narracional”, como o seu modus Philosophandi. Na figura do filósofo como storyteller, há um crescimento da importância do juízo para se compreender o filosofar em Arendt. O pensamento entendido como juízo ligado às circunstâncias mundanas libera o filósofo da tarefa de tematizar o absoluto – os princípios constitutivos de tudo ou o ser, de um ponto de vista arquimediano – e abre a vereda para a compreensão dos caóticos acontecimentos mundanos, isto é, viabiliza a transformação do filósofo em storyteller.
O pensamento “narracional” é o meio que o pensador encontra para lidar com os eventos quando os cânones da historiografia, da metafísica e do pensamento político perderam a capacidade de iluminar o que está acontecendo. Na ausência de padrões confiáveis, passa-se a invocar as próprias experiências como base de análise. Poderíamos dizer que Arendt desenvolve uma concepção de filosofia como storytelling, a habilidade de reter as experiências. Essa abertura do pensamento para experiência é que está na idéia de um “pensar apaixonado”, no qual a vida do espírito deita suas realizações mais importantes, não se dedicando às questões últimas, metafísicas, como nos antigos, mas no desinteressado prazer de julgar os acontecimentos. Nesse aspecto, o filósofo não está na companhia dos deuses, mas segue um percurso amplamente trilhado pelos historiadores, poetas e narradores (AGUIAR, In: BIGNOTTO; JARDIM, 2003, p. 218-219).
Por fim, parece-nos evidente a harmonia na conjugação das categorias aqui expostas: a memória, a narração e a imortalidade. Essa harmonia é possível por garantir o espaço público, isto é, um mundo politicamente organizado. Sendo assim, as ações dos indivíduos podem ser imortalizadas nos seus feitos e garantidas pela narração de memórias, em que ser imortal é, sobretudo, possibilitar a vida plural no espaço público. Desse modo, a delimitação do público e do privado vem à tona como reforço da ação garantida pela equivalência entre o discurso e a ação.
[i] A posição de Hannah Arendt visa demonstrar o quanto a eternidade é uma categoria alheia aos negócios humanos, o exemplo dado por Arendt é o da alegoria da caverna onde o filósofo, tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes, emerge da caverna. Põe-se, assim, em perfeita “singularidade”, nem acompanhado nem seguido de outros. Politicamente falando, se morrer é o mesmo que “deixar de estar entre os homens”, a experiência do eterno é uma espécie de morte. (ARENDT: 2001 p. 29)