1. Introdução
Ludwig Andreas Feuerbach, apesar de pouco pesquisado na academia, foi um pensador contundente para sua época, primeiro pela coragem de dialogar com a tradição, assumindo, assim, um pressuposto filosófico fundamental qual seja: o enfrentamento dos sistemas por dentro, isto é, buscando a crítica a partir de um diálogo direto com os autores por ele elencados, segundo pela inovação ao contrapor a perspectiva filosófica dominante na época que era o idealismo Alemão, que encontrava em Fichte, Schelling e Hegel seus maiores representantes.
Feuerbach tem como seu objeto fundamental, a nosso ver, a recuperação do homem natural, sensível, historicamente determinada, isto é, o homem perdido pela tradição ocidental que o esvaziou em conceito, no caso da filosofia, ou o transformou em consciência frustrada, na medida em que ansiava por outra dimensão, e considerava tudo que era humano como degenerativo do espírito, que um dia iria alcançar a Jerusalém celeste, como no caso do cristianismo. Assim, temos em Feuerbach dois caminhos utilizados para realizar tal empreitada, embora acabem por ser um, ou seja, a crítica à religião e a crítica à filosofia especulativa, que se expressa, segundo o pensador, como religião ou teologia do conceito, e, nessa perspectiva, segundo o filósofo de Landshut, Hegel é a maior expressão.
Feuerbach encontrou no Hegelianismo uma filosofia que o permite pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou como ele expressará o gênero. O que levará a se distanciar do sistema hegeliano é a ambiguidade como este apresenta a religião. O velho Hegel e ainda mais os hegelianos de primeira hora tendem a deixar a religião e a filosofia lado a lado, em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde cedo de pensar o gênero ou essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num ser transcendente, um desconhecido da verdadeira natureza humana de sua relação com o divino que a caracteriza.
Temos, assim, a pretensão de trazer à baila a crítica de Feuerbach a toda forma de filosofia especulativa ou saber que desconsidere a empírica vida dos homens. Portanto, nosso trabalho quer ser uma provocação elucidativa do pensamento do referido autor, não tendo a pretensão de esgotar ou encerrar quaisquer questões sobre o mesmo. Faremos uso de textos centrais do pensador, sobretudo, Necessidade de uma Reforma da filosofia (1842) Princípios da filosofia do futuro (1842), e Teses provisórias para a reforma da filosofia (1843) .
2. Crítica à filosofia Hegeliana ou para construção de uma nova filosofia
Feuerbach parte do pressuposto de que a filosofia de Hegel, apesar de todos os méritos, padece de realidade empírica na medida em que esvazia o mundo dos homens de suas determinações, ficando o mesmo apenas com a idealidade, e tomando esta por realidade. Acaba Hegel por ser a culminância de toda uma maneira de se fazer filosofia que não considerou de forma aguda a existência dos homens, por valorizarem o supra-sensível em detrimento do sensível.
A pretensão de Feuerbach, ao romper com Hegel, é reformar a filosofia, é tirar esta do céu das idéias e a colocar no mundo dos homens. De modo que se faz necessário afastar-se da especulação estéreo da filosofia idealista que não passa de racionalização da teologia. O convite aqui posto por Feuerbach recai sobre uma filosofia que considere o humano enquanto humano, uma filosofia com força positiva, por ser negativa. Uma filosofia que não teme a ruptura para encontrar-se com a realidade. Portanto, uma filosofia que vá além do hegelianismo e do cristianismo salvacionista, consoante Feuerbach
“A filosofia Hegeliana foi à síntese arbitrária de diversos sistemas, de insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta. Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo que tem a força de criar a novidade (...). O cristianismo já não corresponde nem ao homem teórico, nem ao homem prático; já não satisfaz o espírito, nem sequer também satisfaz o coração, porque temos outros interesses para o nosso coração diversos da beatitude celeste e eterna” (FEUERBACH, 1988 p. 14 )
Assim, observamos que as críticas à postura de Hegel, realizadas por Feuerbach, representam uma tomada de consciência da realidade sensível. Tal fato é visível no pensador materialista desde seus trabalhos iniciais quando o mesmo afirma que a filosofia de Hegel não passa de um logocentrismo, constatação essa feita na obra “Para a crítica da filosofia Hegelina” (1839), ou seja, a filosofia de Hegel estabelece uma centralidade absurda no conceito, na postura idealista, nas realidades extra-mundo, no racionalismo anti-histórico. Para Feuerbach, a filosofia não pode começar pressupondo a si mesma, mas, ao contrário, iniciar com o não-filosófico; assim, o pensamento deve entrar em diálogo com o que é da ordem do empírico. Dessa forma, Feuerbach propõe, contra as mediações infinitas do sistema hegeliano, uma retomada da imediatidade tanto do pensamento quanto da intuição sensível, levando ambas a um diálogo.
Feuerbach, nas teses provisórias para uma reforma da filosofia (1842), rompe definitivamente com a especulação hegeliana e com seu próprio ideal teórico-prático da filosofia, e o faz reconhecendo positivamente na religião sua capacidade de satisfazer as necessidades do coração e do sujeito sensível, sua afirmação da sensibilidade e da certeza imediata. A nova filosofia deveria resgatar precisamente este momento da religião, possibilitando a conciliação entre filosofia e vida, essência e individualidade, teoria e prática.
“A essência da teologia é a essência do homem, transcendente, projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do homem” (FEUERBACH, 1988 p.21)
Dividir o homem, cindi-lo em seu existir foi a tarefa da tradição filosófica, que negou a sensibilidade. Esta filosofia, chamada de idealismo, em sua busca de uma essência infinita, esqueceu-se do homem, este foi por um processo de exteriorização de sua essência, isto é, daquilo que o faz humano, negligenciado. Urge, pois, um novo entendimento, e este só pode ser o de resgatar o homem natural e sensível, daí a nova filosofia ter quer iniciar com o finito, enxergando nesse o próprio infinito e ascendendo do concreto para o abstrato.
Aqui, o salto a ser dado reside no resgate dos elementos positivos da religião, quais sejam: sua afirmação das necessidades do coração e da certeza sensível. A nova filosofia brotará do próprio homem que pensa a si mesmo, descobrindo-se em sua essência como a infinita perfectibilidade, e não como algo pré-formado e dado de uma vez por todas.
“A nova filosofia, a única filosofia positiva, é a negação de toda a filosofia de escola, embora dela contenha em si a verdade, é a negação da filosofia como qualidade abstrata, particular, isto é, escolástica: não possui nenhum santo-e-senha, nenhuma linguagem particular, nenhum nome particular, nenhum princípio particular, ela é o próprio homem pensante – o homem que é e sabe que é a essência autoconsciente da natureza, a essência da história, a essência dos Estados, a essência da religião – o homem que é e sabe que é identidade real (não imaginária), absoluta, de todos os princípios e contradições, de todas as qualidades activas e passivas, espirituais e sensíveis, políticas e sociais – que sabe que o ser panteísta, que os filósofos especulativos ou, antes, os teólogos separavam do homem, e objetivavam num ser abstracto, nada mais é do que a sua própria essência indeterminada, mas capaz de infinitas determinações” (FEUERBACH. 1988 p, 32-33)
Para Feuerbach, a verdadeira filosofia deve considerar a natureza em sua realidade mesma e não duplicá-la, ou ainda esvaziá-la de suas determinações. Não cabe, pois, à filosofia negar o que é, ao contrário, é tarefa sua por em evidência a essência mesma da coisa, e a essência da natureza é o homem sensível, histórico e não uma formulação abstrata. Segundo o pensador em questão, “A filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e os seres como são – eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia” (FEUERBACH, 1988, p. 26). Assim, temos a filosofia especulativa e, de modo especial, Hegel realizou um caminho inverso da verdadeira filosofia. A filosofia especulativa tem como objeto o absoluto. Contudo, o absoluto do idealismo é ilusão, é pura forma, carece de conteúdo de necessidade. O absoluto do idealismo é ser sem limites, sem carência. A nova filosofia não tem como conceber tal ser, sob pena de não realizar sem intento de superar tal estrutura. Uma filosofia que considere o existir sensível não pode, por exemplo, negar dimensões fundamentais desse existir, como o espaço e o tempo, tais estruturas “são formas de revelação do infinito real.” (FEUERBACH, 1998, p.27). Reconhecer a vida e a natureza presente nela é reconhecer a necessidade, a contingência, a dor, o sofrimento. O resgate do homem natural passa por assimilar suas características fundamentais, negadas ao longo do tempo pela filosofia especulativa. De acordo com Feuerbach:
“Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma aflição, também aí não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum espírito, nenhuma chama, nenhum amor. Só o ser indigente é o ser necessário. A existência sem necessidade é uma existência supérflua. O que é em geral isento de necessidade também não tem qualquer necessidade da existência. Quer ele seja ou não é tudo um – um para si, um para os outros. Um ser sem indigência é um ser sem fundamento. Só merece existir o que pode sofrer. Só o ser doloroso é um ser divino. Um ser sem afecção é um ser sem ser. Mas um ser afecção nada mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria.” (FEUERBACH, 1988, p. 27)
A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa incide na dificuldade desta de reconhecer a vida e seus componentes como objeto. O mundo dos homens não tem valor investigativo para a filosofia especulativa, a constatação mais eminente disso talvez seja a argumentação da ciência da lógica hegeliana ao tratar o “Nada” enquanto fundamento na medida em que concebe o absoluto como puro ser. Assim, “Hegel começa, como mencionado, com o puro ser ou, melhor expresso, com o conceito do ser ou com o ser abstrato, vazio mesmo, pelo qual ele quer assentar o primeiro princípio da filosofia, o primeiro cientificamente. Em oposição a Hegel, Feuerbach pergunta em seu escrito Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (Para a Crítica da Filosofia Hegeliana) (1839): deve o princípio do filosofar, como Hegel o concebe ser o conceito abstrato do ser? “Por que eu não devo começar com ser mesmo, isto é, com o ser real? Ou por que não com a razão, já que o ser, na medida em que ele foi pensado, tal como ele é objeto na ‘Logik’, me remete imediatamente à razão?’’ (FEUERBACH, 1970, p. 23-24) Ou melhor: se Hegel começa com o espírito absoluto (com a razão, o saber absoluto),ele não inicia já com um pressuposto?”. Feuerbach provoca um retomada do ser ao questionar Hegel na sua opção de partir do indeterminado, do não-ser. Novamente a crítica a Hegel remete a uma nova abordagem do filosofar. De tal forma, que uma filosofia que não tenha como objeto o homem em suas determinações, não pode ser contudente. Assim, “O filosófo deve introduzir no texto da filosofia aquilo que no homem não filosofa, o que, pelo contrário, é contra a filosofia, que se opõe ao pensamento abstracto, portanto, o que em Hegel se reduz a simples nota.” (FEUERBACH, 1988, p.28).
A ruptura de Feuerbach com a filosofia de Hegel vai ganhando corpo a ponto de o pensador materialista propor um abandono da filosofia hegeliana, sob pena de não romper com a égide da teologia, o que implica que para Feuerbach o idealismo especulativo de Hegel equivale à teologia ou, entre palavras, a filosofia hegeliana não passa do recôndito dos racionalistas, sua última morada, com isso, parece-nos que Feuerbach elabora duas críticas: a primeira seria positiva, um elogio a Hegel, ao reconhecer em seu pensamento a forma mais acabada desse paradigma de filosofia, a segunda seria negativa, na medida em que já não é mais possível se filosofar a partir de um ser que é um não ser, ou seja, um vazio de determinações. Consoante o filosofo de Landshut:
“Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana de que a natureza é a realidade posta pela idéia é apenas a expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é, um ser abstracto (...) A filosofia Hegeliana é o último lugar de refúgio, o último suporte racional da teologia. (FEUERBACH, 1988, p.31) ...
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