segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Bioética e sua relação com os direitos humanos

 Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva

1. A Questão do Totalitarismo: Negação dos Direitos Humanos

Em Hannah Arendt, a questão totalitária ou, mais precisamente, o horror totalitário, ocorrido nos campos de concentração instigou-a a investigação de tal fato, levando-a a concluir que acontecia, naquele momento histórico, algo desnecessário e desprovido de significado político.

Hannah Arendt identifica, então, o problema central do totalitarismo como a necessidade de afrontar a dignidade humana pelo sistema estratégico da descartabilidade dos homens. Aqui encontramos toda e qualquer forma de direito do homem negada na medida em que o campo de concentração se transforma na “fábrica de morte”, capaz de produzir cadáveres em série e estabelecer-se na atualização do mal radical, entendido por ela como o progressivo assassinato jurídico, moral e físico, realizado contra as pessoas nos governos totalitários. O ato da descartabilidade humana nos coloca na rota dos direitos humanos, na medida em que estes representam os direitos fundamentais do homem que, ao longo da história, foram assumindo a forma de direito positivo como uma tentativa de singularmente garantir a todo e qualquer indivíduo proteção. Assim, segundo Celso Lafer , o “valor” da pessoa humana como “valor fonte” da vida em sociedade encontra sua expressão jurídica nos direitos humanos, de modo que pensar a defesa da vida, não no sentido abstrato, mas localizado, historicamente determinado no horizonte de sentido de uma comunidade torna-se a tarefa fundante dos direitos reivindicados na teoria de Hannah Arendt, o que autoriza legitimar uma discussão pertinente dos direitos do homem e do cidadão a partir de seu arcabouço teórico.

É preciso tornar evidente o conceito de cidadania em Hannah Arendt para não incorrermos no equívoco de entendê-lo como simples defesa ideológica, pois o mesmo deve ser entendido como “o direito a ter direito”. Nessa perspectiva, entramos na esfera do direito não como algo dado ou metafisicamente posto, e sim, como uma construção histórica determinada; em outras palavras, como uma criação da convivência coletiva, que requer uma convivência em um espaço público comum. Assim, a postura ética vislumbrada por Hannah Arendt nada tem a ver com as tentativas do jusnaturalismo centrada na perspectiva abstrata do bem e do dever. Na visão jusnaturalista o homem aparece como uma idéia universal, eterna e imutável que em última instância, não está em lugar nenhum. Em contraponto a essa idéia, Hannah Arendt resgata a categoria da ação, na qual vai pensar a dimensão ética. Nesse contexto, as dimensões da comunidade e da liberdade emergem como fundantes no horizonte do homem como ser de ação, isto é, como agente constituidor do espaço público. Nesse sentido, tomando por base a questão totalitária, cabe agora um maior detalhamento dessa ação principalmente no tocante ao uso da violência que aparece nesse contexto como negadora dos direitos humanos.

2.A Violência Totalitária – O Braço do Terror

A descrição abaixo mostra todo o horror vivido pelos judeus nos campos de concentração, os quais trouxeram à tona toda a capacidade de destruição sistemática do regime totalitário, tanto quanto apresentaram seu principal método de atuação, a violência:

Nas fábricas da morte [...]. Todos eles morreram juntos, os jovens e velhos, os fracos e fortes, os doentes e os saudáveis; não como povo, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, não como bons e maus, belos e feios, mas reduzidos ao denominador comum do mais baixo nível da vida orgânica em si mesma, mergulhados no abismo mais escuro e profundo da igualdade primitiva, como gado, como matéria, como coisa sem corpo nem alma, sem nem mesmo uma fisionomia sobre a qual a morte pudesse imprimir seu selo. É nessa igualdade monstruosa, sem fraternidade ou humanidade [...], que nós vemos, como que refletida, a imagem do inferno. A maldade grotesca daqueles que estabelecem tal igualdade está para além da capacidade de compreensão humana. Mas igualmente grotesca e para além do alcance da justiça humana está a inocência daqueles que morreram nesta ingenuidade. A câmara de gás foi mais do que qualquer um poderia ter merecido, e, frente a ela, o pior criminoso era tão inocente quanto um recém-nascido. (ARENDT, 2005, p. 198).

O extermínio silencioso produzido pelas fábricas da morte reduz o significado da existência humana a um nada, em que ser ou não ser não tem significado. Para a crueldade nazista, a descartabilidade do outro era algo certo e necessário de tal forma que o extermínio em massa não reflete sobre o significado da existência do outro e, atropelando todos os princípios, cria uma fábrica de cadáveres, para pôr em frente seu objetivo de domínio total, este que é concebido como meta fundamental, tão fundamental que a vida humana passa a ser secundária em nome do objetivo a ser alcançado. Nessa perspectiva, a violência totalitária atua resguardada pelo Estado, ou seja, o Estado aparece aí como fachada, que possibilita ao monstro liberar seus tentáculos. Usando sua política secreta e agindo sob suas próprias insígnia e vontade,

[...]este [o líder] decide sobre quais categorias sociais incidirão os conceitos de inimigo objetivo ou de sociedade indesejável, tipologias que designam aqueles cuja existência implica discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser exterminados independentemente do que pensem. (DUARTE, 2000, p.65).

Esse proceder nos leva à compreensão de como o sistema totalitário é capaz de destruir o “humano construído nos indivíduos” , a tal ponto de vítima e carrasco serem atingidos, pois, na medida em que o campo de concentração anula a liberdade de alguns e produz uma matança sistemática de outros, não apenas as vítimas são desumanizadas, mas executores perdem também o sentido da dignidade humana, fato esse que nos revela a forte característica de novidade do totalitarismo, tanto quanto nos esclarece o seu poder de destruição. Nesse sentido, os campos de concentração se apresentam como a principal instituição dos regimes totalitários, não apenas porque eles condensam e potencializam todos os absurdos implementados na textura do social, por essa forma de dominação sem precedentes, mas, também, porque justamente aí se manifesta o objetivo crucial do totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos.

A violência produzida nos campos de concentração ganhou dimensões inimagináveis. É possível afirmar que até os mais competentes roteiristas de filmes de guerra ou literatos do gênero não tenham, até então, colocado em suas obras tamanho requinte de crueldade e horror como fez o totalitarismo nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Essa violência manifesta, sobretudo um novo desafio para a compreensão da política, na medida em que as categorias da modernidade se mostram inadequadas ou insuficientes para dar conta de tamanha ruptura que se apresenta na história da humanidade. O terror entra no cenário político para fincar marcas indeléveis na história dos homens, mas, sobretudo, para provocar um desafio de compreensão, respostas e ressignificação do agir humano, ainda que essa não fosse sua intenção, mas veio à tona em vista de tamanha violência aplicada.

A violência totalitária é apolítica, na medida em que não permite ao outro o direito de manifestar-se. Até as antigas tiranias eram capazes de se encantar com o discurso contrário as suas práticas e até aderir a posições daqueles que em algum momento se apresentaram como inimigo político. No totalitarismo, tal fato é inviável já que o outro não tem direito a compor o tecido social, sendo enviado a confinamentos que destroem sua humanidade ou são diretamente exterminados em câmaras de gás ou com outros recursos, contanto que sejam silenciados. O lugar que ocupa o silêncio no modo de agir do totalitarismo tem significado ímpar, tendo em vista que a capacidade do discurso é sempre uma ameaça. O silêncio ganha importância, o mesmo só deve ser quebrado para exaltar os objetivos do movimento totalitário, o líder e seus símbolos. Portanto, o discurso no totalitarismo tanto é mudo, na medida em que é controlado e direcionado, quanto carente de significado e de poder de denúncia. O único discurso que sobrevive é o do regime totalitário. Fora esse, todos os outros ou se enquadram ou experimentam um último diálogo nos campos de concentração ou câmaras de gás.

Os campos de concentração trouxeram como novidade uma total falta de finalidade, isto é, apresentavam um caráter despropositado em seu agir, tinham que se financiar a si mesmos e eram praticamente destituídos de qualquer produtividade econômica ou de qualquer finalidade política clara e imediata. Por certo, criminosos e opositores ao regime também foram neles encarcerados, mas a verdadeira natureza dos campos não pode ser compreendida recorrendo-se a esse fato, já que eles só se tornaram abundantes, tanto na Alemanha quanto na União soviética, uma vez sufocada toda oposição. Do mesmo modo, os seus internos, em ambos os países, foram várias vezes obrigados a cumprir trabalhos forçados em regime de escravidão, o que ainda poderia ser humanamente compreensível, pois apresentava precedente histórico. Entretanto, a própria falta de planejamento e de organização dessas tarefas forçadas, somada ao fato de que o trabalho jamais constituiu a regra geral no sistema ‘concentracionário’, denuncia a verdadeira destinação dos campos de concentração: a de não servirem para coisa alguma, senão para destruição da liberdade.

A negação e anulação da liberdade humana promovida pelos campos de concentração criaram um clima de destruição do homem, isto é, daquilo que faz o homem ser homem. Artifícios como a liberdade, a pluralidade e a existência de um espaço de convivência política garantem humanidade, enquanto a ausência desses nos leva em direção contrária , mutilando a dignidade humana ou até destruindo-a por inteira.

A violência dos campos de concentração traz no seu interior tamanha força destrutiva, que é capaz de aniquilar o último resíduo humano presente no homem, transformando-o em mero “feixe de reações” que, por sua vez, pode ser aniquilado sem oferecer qualquer resistência. Tudo isso torna claro que a violência encontra morada nos campos de concentração. Sendo ela “senhora-mor” dessa casa de horrores, conduz forçadamente cada um de seus habitantes, que aí se encontram, a uma certeza: sua dignidade como pessoa está marcada para sempre , pelo menos a dos que sobrevivem.

Cabe agora, exposto os malefícios da violência do terror que nega os direitos humanos, discutir como apareceu no contexto contemporâneo à questão específica da bioética, e como ocorreu seu desenvolvimento histórico e sua ligação com as questões de respeito a vida.


3.A Bioética e Sua Implicação Histórico-Filosófica Com os Direitos Humanos

O termo bioética tem formulação estabelecida nos anos 70 do século 20, por ocasião da publicação de um artigo e posteriormente de um livro do prof. Van Rensellaer Potter. Lançava-se aqui a idéia de uma “ponte” entre as ciências da vida e os estudos dos valores. Contudo é preciso considerar uma evolução histórica do conceito de bioética nas duas décadas seguintes a sua formulação inicial. Vejamos: O professor Potter tinha uma grande preocupação com a interação do problema ambiental e das questões de saúde. Suas idéias baseavam-se nas propostas do Prof. Aldo Leopold, especialmente na sua Ética da Terra. Atualmente, esta primeira proposta é classificada por ele próprio como Bioética Ponte, especialmente pela característica interdisciplinar que foi utilizada como base de suas idéias. Esta primeira reflexão incluía um grande questionamento sobre a repercussão da visão de progresso existente na década de 1960. A Partir dos anos 70 o termo bioética ganha um especificidade, tendo em vista os avanços da biomedicina e suas implicações diretas para com os profissionais de saúde, assim, pesquisadores como os professores Warren Reich e LeRoy Walters, ambos vinculados ao Instituto Kennedy de Ética, da Universidade Georgetown/Washington DC, e do professor David Roy, do Canadá, restringiram esta reflexão apenas às questões de assistência e pesquisa em saúde. Em resposta a essa especificidade surgem novas abordagens para a bioética, como a posição do Prof. Warren Reich que reiterou, em 1995, sua perspectiva para o termo, incorporando à sua proposta de Bioética as perspectivas interdisciplinar, pluralista e sistemática. Nessa mesma linha, anos antes, precisamente em 1988, o Prof. Potter reiterou as suas idéias iniciais criando a Bioética Global. O Prof. Potter entendia o termo global como sendo uma proposta abrangente, que englobasse todos os aspectos relativos ao viver, isto é, envolvia a saúde e a questão ecológica. E, por fim, para fechar o leque de amplitude da ação do termo bioética, o Prof. Potter propôs, em 1998, a nova definição de Bioética Profunda, termo que passou a ser cooptado por importantes organizações, como ocorreu em 2001 com o Programa Regional de Bioética, vinculado a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) que definiu bioética igualmente de forma ampla, incluindo a vida, a saúde e o ambiente como área de reflexão. Essa visão Profunda da bioética recai diretamente no respeito à vida, tanto no tocante à saúde como à fundação de mundo comum, ou seja, do espaço que teremos que perpetua até as próximas gerações. Sendo assim, há na bioética uma dimensão política muito forte a considerar, desde o direito a vida estendendo-se ao direito a ter direitos. Neste sentido, entendemos que a bioética guarda uma dissensão ético-política pautada na ação como proposta de parâmetro para seu ethos, isto é, para sua reflexão.

Pelo exposto anteriormente, destacamos a visão de Hannah arendt no tocante ao direito, como algo que se encontra alicerçado na relação entre os homens, e, na participação dos mesmos na vida da comunidade. É, portanto, a relação entre homens, o chão na qual se ergue à idéia de direito em Hannah Arendt. Isto é, a categoria própria para se pensar o direito em Hannah Arendt é a Ação. Sendo assim, cabe agora destacarmos, partindo desses princípios, a questão da bioética que podemos tranquilamente fundamentar na declaração de Nurembergue, que busca promover a vida através da liberdade do livre agir e do princípio de dignidade presentes nos seres humanos como seres singulares portadores de direitos. A declaração de Nurembergue de 1947 destaca pontos centrais para o tratamento dispensado à prática médica ou similar que envolva seres humanos de modo que não temos como pensar a bioética sem considerar esses fatos. Entendemos ainda que a visão de Hannah Arendt acerca do direito vem alicerçar as orientações desta declaração. Vejamos os 10 pontos centrais do texto de Nurembergue:

• O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente.

• O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente.
• O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento.
• O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais.
• Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento.
• O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe a resolver.
• Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota.
• O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 9. O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento.
• O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes.

O que se pode observar a partir da declaração de Nurembergue é que toda prática realizada em Auschwitz se contrapõe a essas orientações, haja vista que os campos de concentração serviram de “base experimental” para médicos e outros cientistas que usaram seres humanos sem considerar esses como portadores de dignidade e de direitos, apenas afirmavam serem as mortes frutos da eutanásia, isto quando davam alguma explicação, já que na maioria dos casos a prática era ocultada, as informações que vazaram cumpriram o papel de agentes de denúncia. Assim, podemos observar o hiato que se criou entre os direitos humanos e a prática científica com seres humanos, de modo que nosso mundo contemporâneo, a partir de tal fato histórico não pôde mais conviver com essas posturas sem considerar um ethos que iluminasse tais práticas e promovesse a reflexão acerca dos direitos do ser humano enquanto um ser portador de direitos, considerando como foco sua ação, isto é, como estabelecemos relações e como fundamos mundo. Em outras palavras, como criamos um espaço público de respeito ao outro. É nesse contexto que emerge a discussão em torno da bioética.

Cabe então, dado o exposto até o momento uma definição de bioética que compreendemos ser, segundo Hottois “uma disciplina ética que se formou em torno de pesquisas, práticas e teorias que visam interpretar os problemas levantados pela biotecnociência e pela biomedicina. Por isso, a bioética é necessariamente interdisciplinar e de identidade instável”. Assim, concluímos que a bioética não é uma filosofia sistemática, nem uma ética geral e menos ainda uma ciência, tendo a mesma um trânsito no saber tecnocientífico, de modo especial o biológico, percorrendo ainda o campo das ciências humanas, como a sociologia, a política, a ética e a teologia. O que marca seu caráter interdisciplinar.

Embora interdisciplinar a bioética não pode se furtar da sua matriz filosófica. É, portanto, fundamental que a bioética mantenha sua identidade filosófica quando discute pressupostos éticos, esclarece conceitos e valores, e toma decisões sobre situações concretas, como pronunciar-se pró ou contra o congelamento de embriões excedentes. Caso a bioética se afaste dessa posição, poderá tornar-se casuística, pragmática, sem raízes éticas, guiando-se apenas por espécie de jurisprudência, que toma decisões semelhantes em casos semelhantes. Isto não significa que a bioética deva distanciar-se das situações cotidianas. Mas, se ela abandonar o juízo ético-prático sobre casos concretos, suscitados pela biotecnociência, perde-se em abstrações e concepções universais, sem força para decidir eticamente sobre os problemas da biomedicina.

Assim, entendemos que as abordagens da bioética e dos direitos humanos estabelecem uma estrita relação conceitual e teleológica, haja vista suas implicações em defesa da vida, da promoção do bem e do espaço, seja físico ou natural, no qual a vida deva perpetuar-se. Trazemos, pois, a reflexão Arendtiana para o centro da problemática, por compreendermos que suas categorias de liberdade, ação, mundo comum e espaço público fundamentam essa defesa da vida proposta pela bioética de modo contemporâneo, sem perder de vista a ação dos homens na história.

Por fim concluímos que a reflexão a respeito da promoção da vida é que cada vez mais pertinente, e entendemos que a bioética e os direitos humanos cumprem um papel central nessa reflexão, haja vista o enfoque que ambas as abordagens destinam aos princípios da autonomia, da beneficência e da promoção da justiça. Sendo assim, entendemos que discutir os temas atuais de pertinência social e cientifica, como uso de células tronco, eutanásia, aborto, além de temas como aquecimento global, a fome e a violência, integram o escopo teórico da defesa da vida e do direito a ter direitos.

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domingo, 6 de junho de 2010

VERDADE E ESPAÇO PÚBLICO
EM HANNAH ARENDT

Prof. Ms. Ricardo George


A situação de um poder centralizador onde as decisões acontecem, sempre de cima para baixo, sem levar em conta a pluralidade e a liberdade dos indivíduos, foi a situação experienciada por Arendt, na Alemanha nazista. Essa experiência marcou-a, ainda mais, quando tomou consciência de Auschwitz em 1943, embora, de inicio, Hannah Arendt, que já estava fora da Alemanha, não tivesse acreditado no fato por entender que este não cabia no contexto em questão, em vista de não apresentar, segundo ela, “Qualquer objetivo militar” e por “ir de encontro a toda necessidade” contudo, o fato era real e verdadeiro e a partir daí ficava mais claro para Hannah Arendt o fato de que questões centrais da vida humana e da política estavam em xeque pelo momento histórico que se apresentava, de tal modo, que quando teve que acreditar em Auschwitz, pronuncio-se da seguinte forma:

“Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto poderia de alguma maneira se ajustar, como pode acontecer sempre na política. Mas neste caso não. Isso [a fabricação sistemática de cadáveres] nunca poderia te acontecido, (...)Auschwitz não deveria ter acontecido”

Essa experiência, por demais forte, que certamente a marcou como pessoa, também definiu seu campo de atuação, porquanto, tendo uma formação filosófica, negou-se a reflexões que se constituíssem por princípios últimos, haja vista que esse tipo de posição pode implantar, junto a outros fatores, o autoritarismo. A opinião do outro, nesse sistema, não vale nada, a ponto da vida ser ceifada por motivos de puro desatino autoritário. Hannah Arendt, chega a essa posição não de forma gratuita mas por ver que a Filosofia desde os gregos, legou a humanidade uma tradição, na qual a verdade poderia ser alcançada. Sendo assim, toda essa tradição teria de certa forma respaldado esses modelos políticos decisionistas, pois, quem tem a “verdade” não precisa pôr em debate nenhuma questão. Termos como pluralidade e espaço público passam a ser figuras de retórica, sem nenhum significado contundente, mas apenas denominações de massa conduzida pelos iluminados
É justamente contra isso que Hannah Arendt se posiciona, isto é, contra posturas que negam o espaço público, ou seja , a possibilidade dos indivíduos se articularem e discutirem propostas, fazendo valer o direito de expressão e de ação , sem medo da repressão ceifadora de vidas e liberdades. Nesse sentido, Hannah Arendt se identifica muito mais como pensadora política e, mesmo assim, não trabalha a cerca de verdades, porquanto suas teses são reflexões que, lançadas, possam ou não servir de ponto para uma reflexão, de tal modo que propagar verdade em política é sempre um risco, que cedo ou tarde poderá desembocar em autoritarismo.
Dada essa posição inicial, evidenciam-se duas questões centrais, que nos propomos aqui a refletir em torno do pensamento de Hannah Arendt:
• A questão da verdade na política
• O espaço público
A questão da verdade se põe primeiramente na disputa entre a verdade racional e a verdade fatual. A verdade racional é por excelência contemplativa chegando a ter características solipsistas , na medida que ela não pode ser comunicada, pois cada indivíduo tem que a encontrar por si mesmo. É o modelo socrático, aderido por Platão.
A grande questão da verdade racional é o que essencialmente a constitui, ou seja, ser sempiterna e trazer em si princípios que podem servir para estabilizar as questões dos homens em seu cotidiano, ou seja, surge de um passeio do filósofo pelo céu das idéias, em busca de princípios últimos e inquestionáveis, isto é, de verdades inabaláveis. Nesse sentido, a verdade racional é alcançada por espíritos especiais, que conseguem atingir um nível de reflexão suficiente para dar conta do mundo pelos princípios antes encontrados em suas reflexões. Admitir essa postura da verdade racional,contudo, é acolher um caráter aristocrático, seletor, no qual está determinado quem tem a verdade e a quem todos devem seguir. Talvez, tenha sido esse o grande equivoco da tradição filosófica, no tocante a política: pensar modelos acabados, paradigmas a serem seguidos, esvaziando a capacidade dos homens da praça de se organizarem por si próprios no processo político, sem a intervenção de uma iluminação que parta de único indivíduo.
A proposta platônica de que o bom governo da pólis ocorreria quando os reis se tornassem filósofos ou filósofos reis, é uma posição que traz, potencialmente, traços autoritários, tirânicos, ao se considerar os riscos que são enormes. Enormes porque a verdade alcançada pelo filósofo-governante não pode ser comunicada à grande massa. O que teríamos de fato seria um rebanho, crédulo e ingênuo, politicamente anulado pelo controle dessas verdades sublimes, que estariam localizadas em um indivíduo ou em uma casta especial.
É compreensível que a busca dessa verdade acabada tenha a pretensão de superar a posição sofista que sacrificava as verdades em nome de suas vitórias passageiras via argumentação. Assumir esse modelo não é a melhor saída, haja vista que nossa época nos legou outro modelo de sofista que não se satisfaz em anular argumentos, mas empreende forças para negar fatos comprometendo aquilo que é o evento histórico, situação primordial da verdade fatual, de tal modo que a luta hoje contra os sofistas continua, só que os atuais estão a usar outros alvos; de qualquer forma, utilizar modelos absolutos de uma verdade pessoal, unilateral, não é a saída.
“A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento ás custas da verdade , enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura mesmo que ás custas da realidade. Em outras palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da ação humana. O filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos fatos que destroem a própria história e sua inteligibilidade”
Pensamos que estão claras as características da verdade racional e suas implicações, de modo que outra postura de verdade totalmente antagônica agora ocupa nossa reflexão: é a verdade fatual, isto é, a verdade montada no espaço e no tempo, portanto, histórica e totalmente imersa nos negócios humanos, não tendo qualquer relação com princípios últimos e acabados.
A verdade fatual é a verdade da vida , ou seja, a verdade que corresponde à atuação do homem no espaço publico. Esta encerra como maior marca a ação, e somente ocorre quando aos indivíduos é possibilitado o direito de fala e de ação, embora muitas vezes as situações sucedam para negar isto em favor de um grupo ou indivíduo que pretenda controle total; de qualquer forma, a ação e sua ocupação histórica a demarcam diferenciando-a de qualquer verdade contemplativa.
Ainda é de se observar que nessa comparação direta entre a verdade fatual e a verdade racional, evidencia-se a fragilidade de verdade fatual, não uma fragilidade qualquer, que lhe possa trazer um abalo circunstancial, mas uma fragilidade que pode a eliminar a ponto da mesma desaparecer , visto que os acontecimentos históricos, isto é, aquilo que é da ordem dos assuntos humanos, é potencialmente mais frágil do que as teorias elaboradas pela verdade racional.
O uso do poder nesse contexto é central, na medida que fatos podem ser distorcidos e manipulados em favor de quem detém o poder. Sendo assim, podemos tranqüilamente afirmar que a verdade fatual é, sobretudo, uma verdade política. É política porque insere-se no âmbito dos negócios humanos. É política porque é presente na vida ativa e, como fato, ela é passível de mentira, de engano ardiloso para manutenção do poder, ainda que no plano dos controles e manipulações.
O que fica evidente é: a razão produz verdades que são contrariadas no patamar do erro e da ignorância, mas a verdade factual é contrariada pela mentira, na medida que esta é histórica.
“Embora, as verdades de maior importância política sejam as factuais, o conflito entre verdade e política foi descoberto pela primeira vez com respeita á verdade racional. O contrário de uma asserção racionalmente verdadeira é ou erro ou ignorância, como nas ciências, ou ilusão ou opinião como na filosofia. A falsidade deliberada a mentira cabal, somente entra em cena no domínio das afirmações factuais.”

A verdade fatual enfrenta um questionamento que é da ordem da verdade racional, ou seja, é por muitas vezes localizada como ilusão, e aqui aparecem pelo menos duas implicações. A primeira é: o poder em vigor sempre há que camuflar ou distorcer, ou, pelo menos, vai tentar realizar isso, pondo a verdade fatual no âmbito da ilusão, como algo irreal, a medida que isso o protege, pois tira o caracter da verdade factual do âmbito do evento e o situa no contexto da dúvida sem maiores evidências, ou seja, o poder aqui entra como contador da verdade, negando testemunhas e a própria história, subverte a verdade do fato em ilusão e dilui a história, pondo em risco o espaço público, onde ocorre livremente a ação. Ferido por essa distorção, o espaço público corre o risco de ser negado e desembocar em puro autoritarismo. Aí reside a segunda implicação. É válido, porém, lembrar o que nos diz Hannah Arendt: fatos e opiniões mesmo separados não são antagônicos , um completa ao outro, eles pertencem ao mesmo domínio .
Portanto, a opinião não pode contrariar o fato, de tal modo que as implicações da verdade fatual se fortalecem pelas opiniões, na medida em que o evento histórico é testemunhado, tendo por base que mesmo em uma diversidade de opiniões sobre o fato, isso não tira dele a condição de evento histórico. Assim, quando propagado, só se fortalece contra o risco de desaparecer, e o anuncio dos eventos que envolvem os negócios humanos aparece, nesse sentido, como uma garantia de verdade do mesmo, para que continue sendo discutido e analisado, embora saibamos que ao poder, com ânsia de controle, o que importa é pôr o evento no esquecimento ou minar sua credibilidade.