segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Bioética e sua relação com os direitos humanos

 Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva

1. A Questão do Totalitarismo: Negação dos Direitos Humanos

Em Hannah Arendt, a questão totalitária ou, mais precisamente, o horror totalitário, ocorrido nos campos de concentração instigou-a a investigação de tal fato, levando-a a concluir que acontecia, naquele momento histórico, algo desnecessário e desprovido de significado político.

Hannah Arendt identifica, então, o problema central do totalitarismo como a necessidade de afrontar a dignidade humana pelo sistema estratégico da descartabilidade dos homens. Aqui encontramos toda e qualquer forma de direito do homem negada na medida em que o campo de concentração se transforma na “fábrica de morte”, capaz de produzir cadáveres em série e estabelecer-se na atualização do mal radical, entendido por ela como o progressivo assassinato jurídico, moral e físico, realizado contra as pessoas nos governos totalitários. O ato da descartabilidade humana nos coloca na rota dos direitos humanos, na medida em que estes representam os direitos fundamentais do homem que, ao longo da história, foram assumindo a forma de direito positivo como uma tentativa de singularmente garantir a todo e qualquer indivíduo proteção. Assim, segundo Celso Lafer , o “valor” da pessoa humana como “valor fonte” da vida em sociedade encontra sua expressão jurídica nos direitos humanos, de modo que pensar a defesa da vida, não no sentido abstrato, mas localizado, historicamente determinado no horizonte de sentido de uma comunidade torna-se a tarefa fundante dos direitos reivindicados na teoria de Hannah Arendt, o que autoriza legitimar uma discussão pertinente dos direitos do homem e do cidadão a partir de seu arcabouço teórico.

É preciso tornar evidente o conceito de cidadania em Hannah Arendt para não incorrermos no equívoco de entendê-lo como simples defesa ideológica, pois o mesmo deve ser entendido como “o direito a ter direito”. Nessa perspectiva, entramos na esfera do direito não como algo dado ou metafisicamente posto, e sim, como uma construção histórica determinada; em outras palavras, como uma criação da convivência coletiva, que requer uma convivência em um espaço público comum. Assim, a postura ética vislumbrada por Hannah Arendt nada tem a ver com as tentativas do jusnaturalismo centrada na perspectiva abstrata do bem e do dever. Na visão jusnaturalista o homem aparece como uma idéia universal, eterna e imutável que em última instância, não está em lugar nenhum. Em contraponto a essa idéia, Hannah Arendt resgata a categoria da ação, na qual vai pensar a dimensão ética. Nesse contexto, as dimensões da comunidade e da liberdade emergem como fundantes no horizonte do homem como ser de ação, isto é, como agente constituidor do espaço público. Nesse sentido, tomando por base a questão totalitária, cabe agora um maior detalhamento dessa ação principalmente no tocante ao uso da violência que aparece nesse contexto como negadora dos direitos humanos.

2.A Violência Totalitária – O Braço do Terror

A descrição abaixo mostra todo o horror vivido pelos judeus nos campos de concentração, os quais trouxeram à tona toda a capacidade de destruição sistemática do regime totalitário, tanto quanto apresentaram seu principal método de atuação, a violência:

Nas fábricas da morte [...]. Todos eles morreram juntos, os jovens e velhos, os fracos e fortes, os doentes e os saudáveis; não como povo, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, não como bons e maus, belos e feios, mas reduzidos ao denominador comum do mais baixo nível da vida orgânica em si mesma, mergulhados no abismo mais escuro e profundo da igualdade primitiva, como gado, como matéria, como coisa sem corpo nem alma, sem nem mesmo uma fisionomia sobre a qual a morte pudesse imprimir seu selo. É nessa igualdade monstruosa, sem fraternidade ou humanidade [...], que nós vemos, como que refletida, a imagem do inferno. A maldade grotesca daqueles que estabelecem tal igualdade está para além da capacidade de compreensão humana. Mas igualmente grotesca e para além do alcance da justiça humana está a inocência daqueles que morreram nesta ingenuidade. A câmara de gás foi mais do que qualquer um poderia ter merecido, e, frente a ela, o pior criminoso era tão inocente quanto um recém-nascido. (ARENDT, 2005, p. 198).

O extermínio silencioso produzido pelas fábricas da morte reduz o significado da existência humana a um nada, em que ser ou não ser não tem significado. Para a crueldade nazista, a descartabilidade do outro era algo certo e necessário de tal forma que o extermínio em massa não reflete sobre o significado da existência do outro e, atropelando todos os princípios, cria uma fábrica de cadáveres, para pôr em frente seu objetivo de domínio total, este que é concebido como meta fundamental, tão fundamental que a vida humana passa a ser secundária em nome do objetivo a ser alcançado. Nessa perspectiva, a violência totalitária atua resguardada pelo Estado, ou seja, o Estado aparece aí como fachada, que possibilita ao monstro liberar seus tentáculos. Usando sua política secreta e agindo sob suas próprias insígnia e vontade,

[...]este [o líder] decide sobre quais categorias sociais incidirão os conceitos de inimigo objetivo ou de sociedade indesejável, tipologias que designam aqueles cuja existência implica discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser exterminados independentemente do que pensem. (DUARTE, 2000, p.65).

Esse proceder nos leva à compreensão de como o sistema totalitário é capaz de destruir o “humano construído nos indivíduos” , a tal ponto de vítima e carrasco serem atingidos, pois, na medida em que o campo de concentração anula a liberdade de alguns e produz uma matança sistemática de outros, não apenas as vítimas são desumanizadas, mas executores perdem também o sentido da dignidade humana, fato esse que nos revela a forte característica de novidade do totalitarismo, tanto quanto nos esclarece o seu poder de destruição. Nesse sentido, os campos de concentração se apresentam como a principal instituição dos regimes totalitários, não apenas porque eles condensam e potencializam todos os absurdos implementados na textura do social, por essa forma de dominação sem precedentes, mas, também, porque justamente aí se manifesta o objetivo crucial do totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos.

A violência produzida nos campos de concentração ganhou dimensões inimagináveis. É possível afirmar que até os mais competentes roteiristas de filmes de guerra ou literatos do gênero não tenham, até então, colocado em suas obras tamanho requinte de crueldade e horror como fez o totalitarismo nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Essa violência manifesta, sobretudo um novo desafio para a compreensão da política, na medida em que as categorias da modernidade se mostram inadequadas ou insuficientes para dar conta de tamanha ruptura que se apresenta na história da humanidade. O terror entra no cenário político para fincar marcas indeléveis na história dos homens, mas, sobretudo, para provocar um desafio de compreensão, respostas e ressignificação do agir humano, ainda que essa não fosse sua intenção, mas veio à tona em vista de tamanha violência aplicada.

A violência totalitária é apolítica, na medida em que não permite ao outro o direito de manifestar-se. Até as antigas tiranias eram capazes de se encantar com o discurso contrário as suas práticas e até aderir a posições daqueles que em algum momento se apresentaram como inimigo político. No totalitarismo, tal fato é inviável já que o outro não tem direito a compor o tecido social, sendo enviado a confinamentos que destroem sua humanidade ou são diretamente exterminados em câmaras de gás ou com outros recursos, contanto que sejam silenciados. O lugar que ocupa o silêncio no modo de agir do totalitarismo tem significado ímpar, tendo em vista que a capacidade do discurso é sempre uma ameaça. O silêncio ganha importância, o mesmo só deve ser quebrado para exaltar os objetivos do movimento totalitário, o líder e seus símbolos. Portanto, o discurso no totalitarismo tanto é mudo, na medida em que é controlado e direcionado, quanto carente de significado e de poder de denúncia. O único discurso que sobrevive é o do regime totalitário. Fora esse, todos os outros ou se enquadram ou experimentam um último diálogo nos campos de concentração ou câmaras de gás.

Os campos de concentração trouxeram como novidade uma total falta de finalidade, isto é, apresentavam um caráter despropositado em seu agir, tinham que se financiar a si mesmos e eram praticamente destituídos de qualquer produtividade econômica ou de qualquer finalidade política clara e imediata. Por certo, criminosos e opositores ao regime também foram neles encarcerados, mas a verdadeira natureza dos campos não pode ser compreendida recorrendo-se a esse fato, já que eles só se tornaram abundantes, tanto na Alemanha quanto na União soviética, uma vez sufocada toda oposição. Do mesmo modo, os seus internos, em ambos os países, foram várias vezes obrigados a cumprir trabalhos forçados em regime de escravidão, o que ainda poderia ser humanamente compreensível, pois apresentava precedente histórico. Entretanto, a própria falta de planejamento e de organização dessas tarefas forçadas, somada ao fato de que o trabalho jamais constituiu a regra geral no sistema ‘concentracionário’, denuncia a verdadeira destinação dos campos de concentração: a de não servirem para coisa alguma, senão para destruição da liberdade.

A negação e anulação da liberdade humana promovida pelos campos de concentração criaram um clima de destruição do homem, isto é, daquilo que faz o homem ser homem. Artifícios como a liberdade, a pluralidade e a existência de um espaço de convivência política garantem humanidade, enquanto a ausência desses nos leva em direção contrária , mutilando a dignidade humana ou até destruindo-a por inteira.

A violência dos campos de concentração traz no seu interior tamanha força destrutiva, que é capaz de aniquilar o último resíduo humano presente no homem, transformando-o em mero “feixe de reações” que, por sua vez, pode ser aniquilado sem oferecer qualquer resistência. Tudo isso torna claro que a violência encontra morada nos campos de concentração. Sendo ela “senhora-mor” dessa casa de horrores, conduz forçadamente cada um de seus habitantes, que aí se encontram, a uma certeza: sua dignidade como pessoa está marcada para sempre , pelo menos a dos que sobrevivem.

Cabe agora, exposto os malefícios da violência do terror que nega os direitos humanos, discutir como apareceu no contexto contemporâneo à questão específica da bioética, e como ocorreu seu desenvolvimento histórico e sua ligação com as questões de respeito a vida.


3.A Bioética e Sua Implicação Histórico-Filosófica Com os Direitos Humanos

O termo bioética tem formulação estabelecida nos anos 70 do século 20, por ocasião da publicação de um artigo e posteriormente de um livro do prof. Van Rensellaer Potter. Lançava-se aqui a idéia de uma “ponte” entre as ciências da vida e os estudos dos valores. Contudo é preciso considerar uma evolução histórica do conceito de bioética nas duas décadas seguintes a sua formulação inicial. Vejamos: O professor Potter tinha uma grande preocupação com a interação do problema ambiental e das questões de saúde. Suas idéias baseavam-se nas propostas do Prof. Aldo Leopold, especialmente na sua Ética da Terra. Atualmente, esta primeira proposta é classificada por ele próprio como Bioética Ponte, especialmente pela característica interdisciplinar que foi utilizada como base de suas idéias. Esta primeira reflexão incluía um grande questionamento sobre a repercussão da visão de progresso existente na década de 1960. A Partir dos anos 70 o termo bioética ganha um especificidade, tendo em vista os avanços da biomedicina e suas implicações diretas para com os profissionais de saúde, assim, pesquisadores como os professores Warren Reich e LeRoy Walters, ambos vinculados ao Instituto Kennedy de Ética, da Universidade Georgetown/Washington DC, e do professor David Roy, do Canadá, restringiram esta reflexão apenas às questões de assistência e pesquisa em saúde. Em resposta a essa especificidade surgem novas abordagens para a bioética, como a posição do Prof. Warren Reich que reiterou, em 1995, sua perspectiva para o termo, incorporando à sua proposta de Bioética as perspectivas interdisciplinar, pluralista e sistemática. Nessa mesma linha, anos antes, precisamente em 1988, o Prof. Potter reiterou as suas idéias iniciais criando a Bioética Global. O Prof. Potter entendia o termo global como sendo uma proposta abrangente, que englobasse todos os aspectos relativos ao viver, isto é, envolvia a saúde e a questão ecológica. E, por fim, para fechar o leque de amplitude da ação do termo bioética, o Prof. Potter propôs, em 1998, a nova definição de Bioética Profunda, termo que passou a ser cooptado por importantes organizações, como ocorreu em 2001 com o Programa Regional de Bioética, vinculado a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) que definiu bioética igualmente de forma ampla, incluindo a vida, a saúde e o ambiente como área de reflexão. Essa visão Profunda da bioética recai diretamente no respeito à vida, tanto no tocante à saúde como à fundação de mundo comum, ou seja, do espaço que teremos que perpetua até as próximas gerações. Sendo assim, há na bioética uma dimensão política muito forte a considerar, desde o direito a vida estendendo-se ao direito a ter direitos. Neste sentido, entendemos que a bioética guarda uma dissensão ético-política pautada na ação como proposta de parâmetro para seu ethos, isto é, para sua reflexão.

Pelo exposto anteriormente, destacamos a visão de Hannah arendt no tocante ao direito, como algo que se encontra alicerçado na relação entre os homens, e, na participação dos mesmos na vida da comunidade. É, portanto, a relação entre homens, o chão na qual se ergue à idéia de direito em Hannah Arendt. Isto é, a categoria própria para se pensar o direito em Hannah Arendt é a Ação. Sendo assim, cabe agora destacarmos, partindo desses princípios, a questão da bioética que podemos tranquilamente fundamentar na declaração de Nurembergue, que busca promover a vida através da liberdade do livre agir e do princípio de dignidade presentes nos seres humanos como seres singulares portadores de direitos. A declaração de Nurembergue de 1947 destaca pontos centrais para o tratamento dispensado à prática médica ou similar que envolva seres humanos de modo que não temos como pensar a bioética sem considerar esses fatos. Entendemos ainda que a visão de Hannah Arendt acerca do direito vem alicerçar as orientações desta declaração. Vejamos os 10 pontos centrais do texto de Nurembergue:

• O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente.

• O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente.
• O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento.
• O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais.
• Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento.
• O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe a resolver.
• Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota.
• O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 9. O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento.
• O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes.

O que se pode observar a partir da declaração de Nurembergue é que toda prática realizada em Auschwitz se contrapõe a essas orientações, haja vista que os campos de concentração serviram de “base experimental” para médicos e outros cientistas que usaram seres humanos sem considerar esses como portadores de dignidade e de direitos, apenas afirmavam serem as mortes frutos da eutanásia, isto quando davam alguma explicação, já que na maioria dos casos a prática era ocultada, as informações que vazaram cumpriram o papel de agentes de denúncia. Assim, podemos observar o hiato que se criou entre os direitos humanos e a prática científica com seres humanos, de modo que nosso mundo contemporâneo, a partir de tal fato histórico não pôde mais conviver com essas posturas sem considerar um ethos que iluminasse tais práticas e promovesse a reflexão acerca dos direitos do ser humano enquanto um ser portador de direitos, considerando como foco sua ação, isto é, como estabelecemos relações e como fundamos mundo. Em outras palavras, como criamos um espaço público de respeito ao outro. É nesse contexto que emerge a discussão em torno da bioética.

Cabe então, dado o exposto até o momento uma definição de bioética que compreendemos ser, segundo Hottois “uma disciplina ética que se formou em torno de pesquisas, práticas e teorias que visam interpretar os problemas levantados pela biotecnociência e pela biomedicina. Por isso, a bioética é necessariamente interdisciplinar e de identidade instável”. Assim, concluímos que a bioética não é uma filosofia sistemática, nem uma ética geral e menos ainda uma ciência, tendo a mesma um trânsito no saber tecnocientífico, de modo especial o biológico, percorrendo ainda o campo das ciências humanas, como a sociologia, a política, a ética e a teologia. O que marca seu caráter interdisciplinar.

Embora interdisciplinar a bioética não pode se furtar da sua matriz filosófica. É, portanto, fundamental que a bioética mantenha sua identidade filosófica quando discute pressupostos éticos, esclarece conceitos e valores, e toma decisões sobre situações concretas, como pronunciar-se pró ou contra o congelamento de embriões excedentes. Caso a bioética se afaste dessa posição, poderá tornar-se casuística, pragmática, sem raízes éticas, guiando-se apenas por espécie de jurisprudência, que toma decisões semelhantes em casos semelhantes. Isto não significa que a bioética deva distanciar-se das situações cotidianas. Mas, se ela abandonar o juízo ético-prático sobre casos concretos, suscitados pela biotecnociência, perde-se em abstrações e concepções universais, sem força para decidir eticamente sobre os problemas da biomedicina.

Assim, entendemos que as abordagens da bioética e dos direitos humanos estabelecem uma estrita relação conceitual e teleológica, haja vista suas implicações em defesa da vida, da promoção do bem e do espaço, seja físico ou natural, no qual a vida deva perpetuar-se. Trazemos, pois, a reflexão Arendtiana para o centro da problemática, por compreendermos que suas categorias de liberdade, ação, mundo comum e espaço público fundamentam essa defesa da vida proposta pela bioética de modo contemporâneo, sem perder de vista a ação dos homens na história.

Por fim concluímos que a reflexão a respeito da promoção da vida é que cada vez mais pertinente, e entendemos que a bioética e os direitos humanos cumprem um papel central nessa reflexão, haja vista o enfoque que ambas as abordagens destinam aos princípios da autonomia, da beneficência e da promoção da justiça. Sendo assim, entendemos que discutir os temas atuais de pertinência social e cientifica, como uso de células tronco, eutanásia, aborto, além de temas como aquecimento global, a fome e a violência, integram o escopo teórico da defesa da vida e do direito a ter direitos.

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domingo, 6 de junho de 2010

VERDADE E ESPAÇO PÚBLICO
EM HANNAH ARENDT

Prof. Ms. Ricardo George


A situação de um poder centralizador onde as decisões acontecem, sempre de cima para baixo, sem levar em conta a pluralidade e a liberdade dos indivíduos, foi a situação experienciada por Arendt, na Alemanha nazista. Essa experiência marcou-a, ainda mais, quando tomou consciência de Auschwitz em 1943, embora, de inicio, Hannah Arendt, que já estava fora da Alemanha, não tivesse acreditado no fato por entender que este não cabia no contexto em questão, em vista de não apresentar, segundo ela, “Qualquer objetivo militar” e por “ir de encontro a toda necessidade” contudo, o fato era real e verdadeiro e a partir daí ficava mais claro para Hannah Arendt o fato de que questões centrais da vida humana e da política estavam em xeque pelo momento histórico que se apresentava, de tal modo, que quando teve que acreditar em Auschwitz, pronuncio-se da seguinte forma:

“Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto poderia de alguma maneira se ajustar, como pode acontecer sempre na política. Mas neste caso não. Isso [a fabricação sistemática de cadáveres] nunca poderia te acontecido, (...)Auschwitz não deveria ter acontecido”

Essa experiência, por demais forte, que certamente a marcou como pessoa, também definiu seu campo de atuação, porquanto, tendo uma formação filosófica, negou-se a reflexões que se constituíssem por princípios últimos, haja vista que esse tipo de posição pode implantar, junto a outros fatores, o autoritarismo. A opinião do outro, nesse sistema, não vale nada, a ponto da vida ser ceifada por motivos de puro desatino autoritário. Hannah Arendt, chega a essa posição não de forma gratuita mas por ver que a Filosofia desde os gregos, legou a humanidade uma tradição, na qual a verdade poderia ser alcançada. Sendo assim, toda essa tradição teria de certa forma respaldado esses modelos políticos decisionistas, pois, quem tem a “verdade” não precisa pôr em debate nenhuma questão. Termos como pluralidade e espaço público passam a ser figuras de retórica, sem nenhum significado contundente, mas apenas denominações de massa conduzida pelos iluminados
É justamente contra isso que Hannah Arendt se posiciona, isto é, contra posturas que negam o espaço público, ou seja , a possibilidade dos indivíduos se articularem e discutirem propostas, fazendo valer o direito de expressão e de ação , sem medo da repressão ceifadora de vidas e liberdades. Nesse sentido, Hannah Arendt se identifica muito mais como pensadora política e, mesmo assim, não trabalha a cerca de verdades, porquanto suas teses são reflexões que, lançadas, possam ou não servir de ponto para uma reflexão, de tal modo que propagar verdade em política é sempre um risco, que cedo ou tarde poderá desembocar em autoritarismo.
Dada essa posição inicial, evidenciam-se duas questões centrais, que nos propomos aqui a refletir em torno do pensamento de Hannah Arendt:
• A questão da verdade na política
• O espaço público
A questão da verdade se põe primeiramente na disputa entre a verdade racional e a verdade fatual. A verdade racional é por excelência contemplativa chegando a ter características solipsistas , na medida que ela não pode ser comunicada, pois cada indivíduo tem que a encontrar por si mesmo. É o modelo socrático, aderido por Platão.
A grande questão da verdade racional é o que essencialmente a constitui, ou seja, ser sempiterna e trazer em si princípios que podem servir para estabilizar as questões dos homens em seu cotidiano, ou seja, surge de um passeio do filósofo pelo céu das idéias, em busca de princípios últimos e inquestionáveis, isto é, de verdades inabaláveis. Nesse sentido, a verdade racional é alcançada por espíritos especiais, que conseguem atingir um nível de reflexão suficiente para dar conta do mundo pelos princípios antes encontrados em suas reflexões. Admitir essa postura da verdade racional,contudo, é acolher um caráter aristocrático, seletor, no qual está determinado quem tem a verdade e a quem todos devem seguir. Talvez, tenha sido esse o grande equivoco da tradição filosófica, no tocante a política: pensar modelos acabados, paradigmas a serem seguidos, esvaziando a capacidade dos homens da praça de se organizarem por si próprios no processo político, sem a intervenção de uma iluminação que parta de único indivíduo.
A proposta platônica de que o bom governo da pólis ocorreria quando os reis se tornassem filósofos ou filósofos reis, é uma posição que traz, potencialmente, traços autoritários, tirânicos, ao se considerar os riscos que são enormes. Enormes porque a verdade alcançada pelo filósofo-governante não pode ser comunicada à grande massa. O que teríamos de fato seria um rebanho, crédulo e ingênuo, politicamente anulado pelo controle dessas verdades sublimes, que estariam localizadas em um indivíduo ou em uma casta especial.
É compreensível que a busca dessa verdade acabada tenha a pretensão de superar a posição sofista que sacrificava as verdades em nome de suas vitórias passageiras via argumentação. Assumir esse modelo não é a melhor saída, haja vista que nossa época nos legou outro modelo de sofista que não se satisfaz em anular argumentos, mas empreende forças para negar fatos comprometendo aquilo que é o evento histórico, situação primordial da verdade fatual, de tal modo que a luta hoje contra os sofistas continua, só que os atuais estão a usar outros alvos; de qualquer forma, utilizar modelos absolutos de uma verdade pessoal, unilateral, não é a saída.
“A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento ás custas da verdade , enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura mesmo que ás custas da realidade. Em outras palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da ação humana. O filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos fatos que destroem a própria história e sua inteligibilidade”
Pensamos que estão claras as características da verdade racional e suas implicações, de modo que outra postura de verdade totalmente antagônica agora ocupa nossa reflexão: é a verdade fatual, isto é, a verdade montada no espaço e no tempo, portanto, histórica e totalmente imersa nos negócios humanos, não tendo qualquer relação com princípios últimos e acabados.
A verdade fatual é a verdade da vida , ou seja, a verdade que corresponde à atuação do homem no espaço publico. Esta encerra como maior marca a ação, e somente ocorre quando aos indivíduos é possibilitado o direito de fala e de ação, embora muitas vezes as situações sucedam para negar isto em favor de um grupo ou indivíduo que pretenda controle total; de qualquer forma, a ação e sua ocupação histórica a demarcam diferenciando-a de qualquer verdade contemplativa.
Ainda é de se observar que nessa comparação direta entre a verdade fatual e a verdade racional, evidencia-se a fragilidade de verdade fatual, não uma fragilidade qualquer, que lhe possa trazer um abalo circunstancial, mas uma fragilidade que pode a eliminar a ponto da mesma desaparecer , visto que os acontecimentos históricos, isto é, aquilo que é da ordem dos assuntos humanos, é potencialmente mais frágil do que as teorias elaboradas pela verdade racional.
O uso do poder nesse contexto é central, na medida que fatos podem ser distorcidos e manipulados em favor de quem detém o poder. Sendo assim, podemos tranqüilamente afirmar que a verdade fatual é, sobretudo, uma verdade política. É política porque insere-se no âmbito dos negócios humanos. É política porque é presente na vida ativa e, como fato, ela é passível de mentira, de engano ardiloso para manutenção do poder, ainda que no plano dos controles e manipulações.
O que fica evidente é: a razão produz verdades que são contrariadas no patamar do erro e da ignorância, mas a verdade factual é contrariada pela mentira, na medida que esta é histórica.
“Embora, as verdades de maior importância política sejam as factuais, o conflito entre verdade e política foi descoberto pela primeira vez com respeita á verdade racional. O contrário de uma asserção racionalmente verdadeira é ou erro ou ignorância, como nas ciências, ou ilusão ou opinião como na filosofia. A falsidade deliberada a mentira cabal, somente entra em cena no domínio das afirmações factuais.”

A verdade fatual enfrenta um questionamento que é da ordem da verdade racional, ou seja, é por muitas vezes localizada como ilusão, e aqui aparecem pelo menos duas implicações. A primeira é: o poder em vigor sempre há que camuflar ou distorcer, ou, pelo menos, vai tentar realizar isso, pondo a verdade fatual no âmbito da ilusão, como algo irreal, a medida que isso o protege, pois tira o caracter da verdade factual do âmbito do evento e o situa no contexto da dúvida sem maiores evidências, ou seja, o poder aqui entra como contador da verdade, negando testemunhas e a própria história, subverte a verdade do fato em ilusão e dilui a história, pondo em risco o espaço público, onde ocorre livremente a ação. Ferido por essa distorção, o espaço público corre o risco de ser negado e desembocar em puro autoritarismo. Aí reside a segunda implicação. É válido, porém, lembrar o que nos diz Hannah Arendt: fatos e opiniões mesmo separados não são antagônicos , um completa ao outro, eles pertencem ao mesmo domínio .
Portanto, a opinião não pode contrariar o fato, de tal modo que as implicações da verdade fatual se fortalecem pelas opiniões, na medida em que o evento histórico é testemunhado, tendo por base que mesmo em uma diversidade de opiniões sobre o fato, isso não tira dele a condição de evento histórico. Assim, quando propagado, só se fortalece contra o risco de desaparecer, e o anuncio dos eventos que envolvem os negócios humanos aparece, nesse sentido, como uma garantia de verdade do mesmo, para que continue sendo discutido e analisado, embora saibamos que ao poder, com ânsia de controle, o que importa é pôr o evento no esquecimento ou minar sua credibilidade.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Estado e Sociedade Civil em Hegel

Por Ricardo George em 04/02/2010


1. Sociedade Civil em Hegel
Hegel foi o primeiro a desenvolver uma conceitografia em torno do termo Sociedade Civil e a estabelecer os limites existentes entre esta e o Estado, ou seja, foi o primeiro a pontuar a diferença existente entre Estado e Sociedade Civil preocupando-se em destacar a cada instância sua própria esfera de ação.
Assim, temos que a filosofia política de Hegel, “filosofia do espírito objetivo” ou “filosofia do direito”, apresenta-nos uma organização sistemática da ação humana e de suas obras na história: as “objetivações” do espírito. A ação do homem articula-se, segundo Hegel, em três níveis: família, sociedade civil e Estado. Para nosso propósito, interessam-nos os dois últimos: sociedade e Estado. Toda ação humana é movida por interesses dirigidos à obtenção de bens específicos. Sem interesse não há ação. O que caracteriza e diferencia a sociedade civil e o Estado é, para Hegel, a natureza, particular ou geral, do interesse que move os homens à ação ou do bem que buscam por meio dela. As ações que derivam de um interesse particular dão origem à sociedade civil. E se inscrevem nela. Por outro lado, o Estado é produto de uma ação que obedece ao interesse geral de toda a coletividade. Dirige-se ao bem universal. Este princípio de distinção entre sociedade civil e Estado é, de um ponto de vista puramente metodológico, útil para estabelecer a diferença entre o social e o político. Hegel denomina a sociedade civil, também, de “sistema das necessidades”. Surge da dinâmica imposta pela satisfação das necessidades particulares. A ação que conduz das necessidades à sua satisfação gera um fluxo de nexos recíprocos entre os homens e cria um nível específico de interação e comunicação: a sociedade civil. Nas palavras de Hegel:
“Contém a Sociedade Civil três momentos: A) A mediação da carência e a satisfação dos indivíduos pelo seu trabalho e satisfação de todos os outros: é o sistema de carências; B) A realidade do elemento universal de liberdade implícito neste sistema é a defesa da propriedade pela justiça; C) A preocupação contra o resíduo de contingência destes sistemas e a defesa dos interesses particulares como de administração e pela corporação” (Hegel, 1997, p.173)

De modo que para Hegel se impõe nesse contexto a necessidade individual, a questão da propriedade e do trabalho. Para o filósofo de Berlim é graças à propriedade que o indivíduo se insere no corpo social e jurídico. Emerge, portanto, a propriedade como momento destacado do desenvolvimento do espírito humano, pois a mesma destaca-se como porta de inserção dos indivíduos na vida legal. Hegel entende que, nesse contexto, o indivíduo necessita trabalhar para satisfazer suas necessidades e incrementar sua propriedade. Contudo, ninguém pode satisfazer sozinho, mediante seu próprio trabalho, todas as suas necessidades. Assim, o que produz e possui, necessita do outro e vice-versa.
Assim, temos que todos passam a carecer dos produtos do trabalho alheio. Desse modo, através do mercado, desenvolvem-se vínculos de interdependência generalizada entre todos os membros de uma coletividade. Esse sistema de interdependência é dinâmico. O trabalho transforma permanentemente os meios de satisfação das necessidades, as mercadorias (tanto os “meios de produção” quanto os bens de consumo). Estes, por sua vez, vão modificando as necessidades. Engendra-se, então, uma dialética permanente entre trabalho, meios de satisfação e necessidades (e entre oferta e procura, segundo os economistas), que confere peculiar dinamismo à sociedade civil . A produção, a distribuição, o intercâmbio e o consumo de mercadorias, objeto da economia política clássica, configuram este sistema que põe as necessidades de uns em conexão com os meios para satisfazê-las, possuídos por outros.
De acordo com o tipo de atividade econômica que desempenha, a população se divide, segundo Hegel, em três grandes “massas” ou “classes”. Obviamente seu conceito de classe pouco tem a ver com o de Marx e se aproxima mais ao de estamento da sociedade medieval. As três classes, ou estamentos, são: a substancial, formada pelos agricultores: a geral, constituída pela burocracia do Estado; e a intermediária ou dos industriais.
Para Hegel, cada um desses estamentos oferece uma contribuição específica à satisfação das necessidades sociais. Tem sua identidade, seus próprios costumes e sua ética. A identidade de cada estamento, e seu caráter complementar, é um elemento fundamental da coesão e da coerência da sociedade civil hegeliana.
Por fim, nosso objetivo primeiro de definir a Sociedade Civil em Hegel parece estar minimamente realizado, na medida em que a reconhecemos como o momento intermediário entre a família e o Estado, representando esta, na categoria da Eticidade; o momento negativo, ou seja, a fase do desenvolvimento histórico em que ocorre a dissolução da unidade familiar . Por conseguinte podemos concluir sobre a sociedade civil em Hegel que:
a) O primeiro princípio da sociedade civil é a pessoa concreta com suas necessidades e busca de satisfação da mesma via trabalho;
b) O segundo princípio é a Universalidade, que deriva do primeiro, uma vez que a particularidade, em busca de satisfazer seu egoísmo, entra em relação com outras particularidades. Sendo esta a condição de efetivação de seus fins.
c) Na sociedade civil cada um é um fim para si – embora almeje o outro, que aparece como meio para efetivação dos fins desejados, o que acaba por gerar uma dependência universal.
d) O homem da sociedade civil ainda não é o homem racional, é o homem do trabalho, em virtude da necessidade. Por isto, a sociedade mantém uma relação finita, própria do entendimento, isto é, unidade externa e não interna das pessoas. Cada indivíduo é tido como fim e isto é específico da esfera econômica – pelo qual o diverge da esfera política.
e) O homem é ser carente que produz e consome.
f) No tocante à dimensão política o homem é um ser portador de direitos universais, não existindo um direito natural. Portanto, todo direito é positivo “o sujeito do direito não é um homem natural, mas o homem do mundo da cultura que alcança o reconhecimento universal”
g) É o momento que antecede a realização da Razão e da Liberdade: o Estado.

2. O Estado em Hegel

Hegel pretendeu restabelecer o reinado da razão, uma razão ampliada, na qual coubessem todas as obras da criação do espírito humano - arte, religião, cultura, sistemas políticos - na história, cujo sentido específico ele procurava discernir. Na expressão de Châtelet, "a razão, que até então era da ordem do discurso, ou dessa ou daquela pessoa privada, tornava-se apanágio da sociedade inteira" (Châtelet, 1994, p. 116). Châtelet explicitou o porquê de falar desse apanágio. Antes dos gregos os homens eram homens, mas viviam sem pensar na liberdade; o conjunto da população era dominado, embora houvesse entre eles alguns homens livres, os chefes (Châtelet,1994,p. 114). Para Hegel, a razão serviu de instrumento de compreensão entre esses diversos homens livres, sendo assim construído o projeto do discurso racional. Mas, sobreveio a decadência dessa tese (gregos), e se afirmou a antítese como superação (os romanos). E foram sucedendo diferentes superações. Esse devir, o devir como tal, é essencialmente dramático: para desempenhar o seu papel na história, um povo é até mesmo obrigado a vencer pela violência a figura que o precede. Assim que, finalmente, com o herói, Napoleão Bonaparte, e com as transformações após o seu fracasso, estabeleceu-se o Estado moderno (Châtelet, 1994: p. 114-6). Segundo Hegel, o Estado moderno é a realização da razão - razão, agora, como apanágio da sociedade inteira .
Para Hegel, o Estado de Napoleão era a realização da razão. Contudo, há um texto extraído do Princípio da filosofia do direito, obra de maturidade de Hegel, que indica os seus cuidados tanto por pensar a universalidade e o absoluto como por considerar a particularidade. Alcançava ele um equilíbrio melhor, dir-se-ia capaz de corrigir a pura imposição estatal, implicada em saber absoluto ou em verdade, concentrados numa forma de Estado:

"A essência do Estado moderno consiste na união da universalidade com a total liberdade da particularidade e da prosperidade dos indivíduos, de modo que, por um lado, o interesse da família e da sociedade civil deve ajustar-se ao Estado, mas, por outro, a universalidade da finalidade não pode progredir sem o saber e o querer da particularidade, que deve conservar o seu direito" (apud. Châtelet, 1994: p. 116; o grifo é nosso)”.

Na “Filosofia do Direito” de Hegel, o Estado aparece como o fim da atividade da vida ética de uma comunidade (que une família e sociedade civil). Em outras palavras, a forma estatal tem primazia ontológica enquanto “efetividade da vontade substancial, efetividade que ela tem na autoconsciência particular erguida à universalidade do Estado”. Desse modo, o conceito de Estado não surge somente como aparato institucional, mas como a forma que efetiva a realização social (finita) plenamente – isto é, que agrega toda a vida ética. Consoante Hegel:

“ O Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade” (HEGEL, 1997, §257).

Daí decorre que a “realidade da ideia ética” nada mais é ...

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

H. Arendt e a Educação

Hannah Arendt - A voz de apoio à autoridade do professor
Para a cientista política, os adultos devem assumir a responsabilidade de conduzir as crianças por caminhos que elas desconhecem
WriteAutor('Márcio Ferrari');

Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das principais pensadoras da política no século 20, mas sua obra inspira estudos em outras áreas, entre elas a educação. Poucos intelectuais atuaram tão diretamente em seu tempo como Arendt, que foi vítima, ainda jovem, da perseguição nazista em sua Alemanha natal. Como uma filósofa (designação que a desagradava) interessada em particular no fenômeno do pensamento e no modo como ele opera em "tempos sombrios", Arendt não poderia deixar de se ocupar do ensino. A pensadora abordou o assunto em dois textos, A Crise na Educação (incluído no livro Entre o Passado e o Futuro) e, mais indiretamente, Reflexões sobre Little Rock, escritos em 1958 e 1959 respectivamente. Na época, as salas de aula nos Estados Unidos – para onde se mudou em 1940 – se viam invadidas por questões sociais como a violência, o conflito de gerações e o racismo. É no primeiro dos dois textos que Arendt apresenta, com a habitual veemência e coragem, uma visão bastante crítica do tipo de educação considerada "moderna", naquela época e também hoje. Em poucas páginas, ela questiona em profundidade alguns dos conceitos pedagógicos mais difundidos desde fins do século 19, e que se originam do movimento da Escola Nova e da concepção do trabalho educativo como um aprendizado "para a vida". "A função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver", escreve Arendt. Sua argumentação é a favor da autoridade na sala de aula e sua visão educativa é assumidamente conservadora. "Isso não quer dizer que ela defenda um professor autoritário", diz Maria de Fátima Simões Francisco, professora de filosofia da educação da Universidade de São Paulo. Nem se trata de ser favorável à escola como um agente da manutenção da ordem estabelecida. Ao contrário, Arendt acreditava que o aluno deve ser apresentado ao mundo e estimulado a mudá-lo. Educação sem política
Tensão racial em Little Rock, EUA, nos anos 1950: crise inspira reflexão
Arendt defendia o conservadorismo na educação, mas não na política. Para ela, o campo político deveria se renovar constantemente, movido pelos objetivos da igualdade e da liberdade civil. Ao reivindicar a total separação entre política e educação, Arendt rejeita linhas de pensamento que partem de filósofos como Platão (427-347 a.C.) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Segundo a pensadora, a política é uma área que pertence apenas aos adultos, agindo como iguais – igualdade que não poderia existir entre crianças e adultos. Ela critica a educação moderna por ter posto em prática "o absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação". "Hannah Arendt defende que cabe aos adultos conduzir as crianças", diz Maria de Fátima Simões Francisco. O papel da tradição
Dessas considerações nasce a defesa da autoridade, uma vez que a escola deverá trazer instrução, isto é, conhecimentos que o aluno não tem. Esse processo não é apenas de aprendizado, mas de preservação do mundo, entendido como a cultura em sua totalidade. Numa formulação ousada, a pensadora defende que é preciso proteger "a criança do mundo e o mundo da criança" – uma vez que o "assédio do novo" é potencialmente destrutivo. A preocupação com a perda da "tradição", definida como "o fio que nos guia com segurança através dos vastos domínios do passado", foi o que levou Arendt a escrever sobre educação. A relação entre crianças e adultos não pode, segundo ela, ficar restrita "à ciência específica da pedagogia", já que se trata de preservar o patrimônio global da humanidade. "Está presente a idéia de que o planeta não pertence só a nós que vivemos nele agora, mas a todos que já estiveram aqui", diz Maria de Fátima. "A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele", escreve Arendt, acrescentando que "a educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos". O mal da irreflexão
A obra mais difundida de Hannah Arendt origina-se de uma reportagem que lhe foi encomendada pela revista New Yorker. No ano de 1961, ela foi enviada a Israel para cobrir o julgamento do alto burocrata nazista Adolf Eichmann. No livro Eichmann em Jerusalém, a pensadora cunhou a expressão que a celebrizou: "a banalidade do mal", em referência aos códigos aparentemente lógicos e até sensatos com que o totalitarismo se propaga e ganha poder. Durante o julgamento, chamou a atenção da pensadora a figura prosaica do réu. Em Eichmann, um homem de aparência equilibrada e comum, Arendt identificou alguém habituado a não pensar. Os perigos da irreflexão, como sinal de alienação da realidade, constituem um dos principais eixos de uma obra que pode trazer contribuições para a educação em muitos aspectos. No artigo A Crise na Educação, Arendt dá ênfase ao conceito de responsabilidade dos adultos tanto em relação ao mundo como às crianças. "Formar para o mundo significa, entre outras coisas, adquirir a noção do coletivo", diz a educadora Maria de Fátima Simões Francisco. É um processo que só se realiza, em cada aluno, com a intervenção do pensamento para a criação de uma ética perante o grupo.
Para pensar
Hannah Arendt defendia que os adultos têm dois tipos de obrigação em relação às crianças. Uma recai sobre a família, responsável pelo "bem-estar vital" de seus filhos. Outra fica a cargo da escola, a quem cabe o "livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais". Ela acusa a educação praticada nos Estados Unidos à época da publicação do artigo de abrir mão de sua função ao rejeitar a autoridade que decorre dela. "Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte na educação", escreve Arendt. Você, professor, concorda com ela? Qual é, a seu ver, a principal responsabilidade de sua profissão?
Uma testemunha do terror de Estado
O julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém: banalidade do mal
No início de sua vida acadêmica, mal saída da adolescência, Hannah Arendt era uma apaixonada pela filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), filho mais célebre da cidade em que foi criada, Königsberg (hoje Kaliningrado, na Rússia). Ela mesma admitia que foram os acontecimentos – a começar pela perseguição nazista à sua família – que a fizeram migrar da filosofia mais abstrata para a ciência política e a refletir sobre as questões urgentes de seu tempo. Em As Origens do Totalitarismo, ela analisa e descreve o regime típico do século 20, representado pelo nazismo e pelo stalinismo, dois sistemas de princípios opostos e estratégias muito semelhantes, como o terror, o papel marcante da ideologia e o uso de polícias secretas. Toda sua obra dialogou com os dilemas morais e políticos mais graves do século 20, com ênfase nas possibilidades do indivíduo diante do poder.
Biografia
Hannah Arendt nasceu em 1906, em Hannover, na Alemanha, de uma família judia. Cedo ela direcionou seus estudos para a filosofia, passando a se dedicar à ciência política. Na Universidade de Marburg, foi aluna do filósofo Martin Heidegger (1889-1976), com quem manteve uma ligação amorosa que se estendeu por 50 anos – período durante o qual ela foi casada duas vezes e ele uma. O nazismo levou Arendt a emigrar, em 1933, para Paris, de onde teve novamente de fugir em 1940, indo para Nova York. Naturalizou-se norte-americana em 1951, ano em que publicou seu primeiro livro, As Origens do Totalitarismo. Ao adotar uma perspectiva liberal, que não se alinhava com os extremos ideológicos, Arendt construiu um pensamento independente e crítico, até mesmo, às vezes, em relação a grupos com os quais compartilhava idéias, como os sionistas e a esquerda nãomarxista. Morreu em 1975 em Nova York, onde era professora universitária.
Reportagem da revista escola de 07/2008
Quer saber mais?
Entre o Passado e o Futuro, Hannah Arendt, 352 págs., Ed. Perspectiva, tel. (11) 3885-8388, 34 reais Maria de Fátima Simões Francisco

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Corrupção


O PROBLEMA DA CORRUPÇÃO!
A corrupção tem origem na palavra ruptura, que pode significar o rompimento ou desvio de um código de conduta moral ou social e infelizmente se espalha por todos os países. O fenômeno não é novo e atualmente, a corrupção é vista como uma espécie de conduta através da qual o agente, motivado por alguma vantagem, age desvirtuando as regras de determinado objetivo, contrariando o que a sociedade considera como justo e moral. O problema de sua definição está exatamente em identificar as regras que foram desvirtuadas. Além disso, a proximidade das relações sociais entre os agentes dificulta identificar uma situação de corrupção ou apenas uma situação socialmente aceitável. O quadro atual do Brasileiro retrata claramente o excesso de fraudes, sonegação, pagamento de propinas, facilitação de contratos, a burla de normas de licitações públicas, arrecadação ilegal, dentre outros. Os sistemas burocráticos, a pouca fiscalização e a lentidão da justiça são fatores que favorecem a corrupção nas empresas, uma vez que a complexidade do sistema fiscal e tributário é tamanha que se torna difícil seguir todos os trâmites, facilitando assim, os verdadeiros “trambiques”. Não se pode achar que a corrupção é um problema único e exclusivo do Brasil; toda a comunidade mundial volta seus olhos para esse fenômeno e seus impactos sobre a sociedade como um todo. A análise econômica sobre a corrupção não é completa e nem pretende ser. É muito simplista considerar que o impacto da corrupção limita-se apenas à redução do investimento e a problemas na alocação de talentos. O custo social é muito maior que o econômico, pois desviar recursos que poderiam melhorar as condições de vida da população é uma ofensa para aqueles que acreditam na democracia e na justiça social.
Segundo o historiador Sérgio Buarque Holanda (1973 apud MOTTA; ALCADIPANI,1999) autor de a formação e estruturação da sociedade brasileira foram marcadas pela exploração máxima dos recursos naturais do país para serem vendidos ao mercado europeu. Tal fato ficou evidente nos grandes ciclos econômicos no Brasil colonial e no início e meados do período republicano (cana de açúcar, mineração e café). O ímpeto de exploração metropolitana no período colonial fez com que o reino português evitasse o desenvolvimento do país e não levasse em conta as particularidades nacionais quando da implementação das estruturas administrativas, sociais e econômicas. Para tanto, moldou e geriu a colônia conforme as suas normas, regras e estruturas. O fato de fazer tudo “a imagem e semelhança do reino” fez com que as citadas estruturas aqui implementadas não levassem em conta a realidade brasileira de então. Assim, o Estado que aqui existia não defendia os interesses brasileiros e muitos menos, os da população local. Ainda segundo o autor, a adoção de modelos das sociedades tidas como desenvolvidas e a imposição de uma elite minoritária sobre a população não ficaram restritas ao período colonial ou republicano, haja vista que tal fato continuou a ocorrer, sendo que a estrutura político – social brasileira resistiu às transformações fundamentais: a camada dominante continuou a controlar e a dominar a população. No que se concerne às formas de gerir mão de obra, o cunhadismo foi à primeira maneira de sujeitar pessoas para trabalharem a favor dos interesses europeus quando da exploração do paubrasil, madeira extraída da colônia. Ele se deu porque através do casamento com uma indígena, o esposo passava a ser parente de toda a tribo á qual a índia pertencia e o europeu utilizou-se dessa relação de parentesco, estabelecida por seu “casamento” para fazer com que seus “parentes” índios trabalhassem na extração desta valorizada madeira. Essa relação de dominação era cordial e aparentemente igualitária. O“jeitinho brasileiro” ou popularmente a corrupção que acontece indiferente da camada social é o genuíno processo brasileiro de uma pessoa atingir objetivos a despeito de determinações (leis, normas, regras, etc) contrárias. È usado para “burlar” determinações que, se levadas em conta, inviabilizam ou tornariam difícil à ação pretendida pela pessoa que se pede o jeito. Assim, funciona como uma válvula de escape individual diante das imposições e determinações. Vale destacar que o referido “jeitinho”, segundo BARBOSA (1992), é dominante nas relações que deveriam ser intermediadas pela dominação burocrática, sendo, portanto dominante nas relações entre as pessoas e o Estado Brasileiro, que deveriam ser intermediadas pela legislação genérica - universal. Ainda segundo o referido autor, muitos pesquisadores do tema ligam a corrupção aos aspectos culturais e ao tradicionalismo. Isto porque já se tem em mente que o corrupto não será punido. A presença constante de pequenas mentiras leva os indivíduos a crerem estar em um mundo onde o abuso do poder leva a corrupção. Por isso o fenômeno é passível de ocorrer em qualquer instância da sociedade, principalmente naquelas em que o poder repressivo e punitivo dos atos de corrupção ainda estão desagregados. Dessa forma, pode-se afirmar que, em muitos casos, a existência da corrupção na educação infantil é uma realidade que trás conseqüências desastrosas para o futuro.
Há diversos tipos de corrupção e formas de combatê-la. Para NAÍM e GALL (2005) é possível classificar a corrupção em três tipos; a corrupção empresarial competitiva, a corrupção estimulada pelo crime organizado e a corrupção política.Segundo o relatório da ONG – Transparência Brasil (2004), a situação da corrupção nas empresas brasileiras é alarmante, cerca de 7 a cada 10 empresas entrevistadas afirmaram gastar até 3% do seu faturamento no pagamento de propinas, sendo que parte do restante afirmou gastar ainda mais, entre 5% e 10% do faturamento. Conforme constatado, as empresas se acostumaram com corrupção. Apesar de 78% das empresas entrevistadas terem afirmado possuir códigos de ética que proíbem o pagamento de propinas, pelo menos 21% dessas mesmas empresas também afirmaram aceitar a corrupção em suas políticas gerenciais. Outra constatação foi que as empresas entrevistadas pela ONG afirmaram oferecer presentes ou outras "gentilezas" para agentes públicos, como um dos métodos eficientes de obter tratamento diferenciado. Também a contribuição para campanhas eleitorais foi considerada uma alternativa para o mesmo fim por 77% das empresas, além do nepotismo com 74%."As empresas encaram a corrupção como despesa dentro do mercado em que atuam e erram ao usar a realidade da propina como fator de estratégia empresarial", afirma o diretor executivo da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo.
Segundo a economista Ecléia CONFORTO (2004), é possível afirmar, que a corrupção tem solução sim. Qualquer ação no sentido de combater a corrupção deve levar em consideração que a mesma pode ser vista como decorrência de um comportamento oportunista de um agente econômico, relacionado ao controle e à regulamentação por parte do governo das atividades econômicas. Sendo assim, as ações direcionadas ao combate da corrupção devem primordialmente estabelecer regras sérias e justas que garantam o resultado esperado pela
sociedade. Seu efeito pode não ser imediato, mas com o passar do tempo e através da conscientização das pessoas há uma grande possibilidade de minimizar a corrupção. Para a autora, os valores morais são fundamentais para que se compreenda a extensão da corrupção e a recrimine. A forma como a sociedade vê e aceita determinadas atitudes como
violação das leis de trânsito ou a compra de produtos piratas/contrabandeados é um indicador sobre a aceitação de atos corruptos. Sociedades com valores mais frágeis tendem a ser mais corruptas. Além disso, é necessário simplificar os processos administrativos reduzindo os espaços para a corrupção, contando com a participação de órgãos de fiscalização e controle das políticas públicas.
Segundo Ricardo VOLLBRECHT e Eduardo KÜMMEL (2004), por muito tempo as pessoas têm em mente que quem está no poder é corrupto. E que seria necessário à renovação da administração para que a corrupção parasse. No entanto, o que se vê, na realidade, é a troca dos administradores, em todas as esferas, sem que isso gere a diminuição da escalada da corrupção. Segundo os autores dentro desse contexto, é obrigatório lembrar da famosa lição de ciência política , segundo a qual "todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de forma absoluta". Ora, se a corrupção permanece
mesmo depois da saída dos corruptos, é preciso então, indagar se o mal está nos homens ou na organização da empresa.
Referência bibliográfica
MOTTA, Fernando C. Prestes; ALCADIPANI, Rafael. Jeitinho Brasileiro: controle social e
competição.. São Paulo: RAE – Revista de Administração de Empresas, v.31, no 1, p. 6-12, Jan/
mar 1999. Disponível em: http://www.rae.br/artigos/87.pdf
CONFORTO, Ecléia. Quanto Custa a Corrupção. SINPRO Jornal Extra Classe, 2004. Disponível
em: http://www.sinpro-rs.org.br/extraclasse/set05/economia.asp
TRANSPARÊNCIA BRASIL. Relatório Anual de Corrupção nas Empresas. 2004. Disponível
em: http://www.tcc-brasil.org.br/artigos.html

Totalitarismo e Sociedade de Massas

TOTALITARISMO E SOCIEDADE DE MASSAS: O ESPAÇO PÚBLICO EM RISCO.
Prof. Msc. Ricardo George
Origens do totalitarismo entra no cenário editorial como um dos textos mais marcantes do pensamento político contemporâneo. Ao tratar do tema ‘totalitarismo’, Hannah Arendt se propõe esclarecer algo que para ela é novo, ou seja, algo que não tem precedentes na história (ARENDT, p. 343). Essa novidade política traz no seu bojo a pretensão de domínio total, o uso da violência e a negação da liberdade. O totalitarismo surge, assim, como sistema negador da política. Apoiado nas massas, nelas encontra terreno fértil para cultivar sua ideologia. No processo de “atomização da sociedade”, fruto da falta de interesse comum das massas e desenraizamento político, o sistema totalitário estrutura seu edifício de terror e domínio total. Nessa perspectiva, encontramos as massas como constituindo a estrutura básica do totalitarismo , isto é, os governos totalitários edificam-se sobre bases que são as massas que eles organizaram politicamente. Podemos perceber, então, que as massas ocupam lugar central no contexto do totalitarismo e servem a esse regime em várias frentes, pois lhes são solícitas quanto à implantação de uma ideologia, já carecem de enraizamento e identidade política. Elas lhes são solícitas quanto ao contingente numérico que fortalecem os partidos totalitários e os também os favorecem com a condução ao poder pelas vias democráticas, como ocorreu com Hitler e o Nazismo na Alemanha do período entre guerras, o que nos conduz à reflexão de que os movimentos totalitários colocaram, à vista de todos, duas fragilidades dos regimes democráticos parlamentares (ARENDT, p. 362), a saber:
a) a crença de que povo, em sua maioria, participa ativamente do governo e,
b) de que as massas neutras e desarticuladas constituem apenas o “pano de fundo silencioso” da vida política da nação.
Nesse contexto de relações frágeis ou até inexistentes entre os homens é que encontramos elementos para afirmar que as massas fornecem material para a construção do que Arendt chamou de movimento totalitário. Cabe aqui a distinção entre movimento e regime totalitários na medida em que Hannah Arendt põe abaixo a máxima segundo a qual uma sociedade democrática não pode conviver com um movimento totalitário. Segundo Newton Bignotto, o que se observou na Alemanha e o que vemos nas sociedades atuais é que as democracias são passíveis de ser usadas pelos movimentos extremistas exatamente porque não podem impedir a manifestação de divergências. Nunca é demais lembrar que Hitler chegou ao poder por meios legais. No entanto, as massas, dadas suas características, só se tornam ativas quando conduzidas por um líder, que lhes empresta um rosto e confere sentido a suas ações.
O papel do líder para as massas funciona como o do pastor de ovelhas para o rebanho de modo que, sem pastor, o rebanho fica sem rumo, e lhe falta à identidade. O pastor é aquele que direciona e que fornece segurança a respeito do futuro: “Ele conhece o caminho”. Essa metáfora nos ajuda a entender a importância do líder, daquele que direciona e conhece o caminho. As massas, então, devotam a esse líder a esperança e aquilo que lhes falta. Agora, fincam raízes sobre a ideologia que esse líder-pastor lhes oferecer, sendo as palavras deste a verdade, e suas bandeiras, a glória. As massas encontram identidade ainda que sob a forma de manobra. É a manobra a grande forma de dominação e controle utilizada pelo movimento totalitário junto às massas, já que o isolamento social é uma de suas grandes características, o que favoreceu a ação do movimento totalitário. A respeito disso nos diz Arendt:
A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do homem de massa não é a brutalidade nem rudeza, mas o isolamento e a sua falta de relação. (ARENDT, p. 366-367).
As massas, nesse contexto, apresentam-se como os habitantes de uma parte destruída do espaço político, isto é, são aqueles para quem o espaço da ação e do discurso não tem sentido, porque já não há nessas pessoas vínculo social ou motivação política, sendo sua grande marca a apoliticidade. Assim, indicam, por sua presença, um espaço público negado, onde ela mesma pode ser eliminada, justamente por não ocupar o espaço público, sendo esse vácuo de ação solo fértil para o controle das massas. É, portanto, sua inércia diante da cena pública que a conduz a manipulações de toda sorte.
Hannah Arendt, em nota de rodapé da terceira parte de Origens do Totalitarismo (p. 366-367), destaca quanto um líder pode fascinar. É evidente que esse fascínio ocorre a partir de circunstâncias específicas e favoráveis. Ora, se levarmos em conta esse “terreno desertificado” em que vivem as massas, que representa toda sua indiferença com o que é da ordem do comum, temos aí as condições favoráveis para o líder aparecer como esclarece Hannah Arendt:
O fascínio é um fenômeno social, e o fascínio que Hitler exercia sobre o seu ambiente deve ser definido em termos daqueles que o rodeavam. A sociedade tende a aceitar uma pessoa pelo que ela pretende ser, de sorte que um louco que finja ser gênio sempre tem certa possibilidade de merecer crédito. (ARENDT, p. 355).
Esse crédito dado a qualquer desvairado só pode dar frutos onde ainda não há frutos para colher, ou seja, só encontra onde fincar raízes onde o terreno for desertificado, a partir do que constatamos serem as massas um grupo extremamente propenso ao nascimento do movimento totalitário.
As massas fascinadas dão todo suporte necessário para o totalitarismo estabelecer sua ideologia, e os recursos utilizados para isso são a propaganda e a violência, que se apresentam como as grandes estratégias de consolidação e manutenção do movimento totalitário. Como público-alvo, ele tem as massas.
A propaganda promovida aparece como o momento antecedente da instauração dos regimes totalitários, contudo vai adiante e o acompanha em todo seu curso de abuso de poder, oferecendo-lhe uma imagem que possa ser cultuada, ainda que à custa da mentira. (ARENDT, p. 357).
A violência, por sua vez, apresenta-se como o marco definidor daquilo que vai ser o regime totalitário, pois sua ação garante aos regimes totalitários o medo e o “encanto” necessários para dar continuidade ao seu propósito de domínio total a partir da descartabilidade de pessoas. O medo aparece para aqueles que, de uma forma ou de outra, se mostram contrários aos métodos do totalitarismo enquanto, para a ralé, o “encanto” representa um sinal de esperteza, apesar da violência dos crimes. Tal é o nível de entrega das massas a essa proposta, que, mesmo quando o totalitarismo destrói os seus, isso não os afeta, como se aniquilar os próprios companheiros fosse um “mal necessário.” Consoante Hannah Arendt:
O que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo de seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazista ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento, mas o fato espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar os próprios filhos, nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. (ARENDT, p. 357).
SILVA, Ricardo G. A. O totalitarismo e a socieadede de massas: o espaço público em risco.In Extratos de filosofia. Ed. UFC. Fortaleza 2009. p.209-221

O Estado em Marx

A questão do Estado em Marx
Prof. Msc. Ricardo George
Trazemos a baila à questão do Estado, que para Marx ocupa lugar central na medida em que é impossível pensar o capitalismo sem aquilo que o sustenta enquanto estrutura. Afirmamos isto, por entender que na sociedade capitalista o Estado está a serviço da propriedade privada, garantindo sua manutenção e reprodução, de modo que esta instituição burguesa age a fim de responder às necessidades dos donos dos meios de produção: os burgueses. A educação desse Estado certamente não poderá, por uma questão lógica, ir de encontro a sua estrutura, afinal ninguém cria para si o próprio germe de destruição. Então, só se pode esperar dessa instituição uma educação que reproduza suas verdades e necessidades para manutenção do capital. O fato de hoje termos mais acesso à educação em relação ao tempo de Marx, não nos autoriza a afirmar que o Estado acordou para os benefícios junto ao povo. Tudo ocorreu como exigência da sociedade produtiva, que demanda maior qualificação, dentre outras variantes, do que na época de Marx a fim de satisfazer a manutenção do poder do capital, o que revela bem o papel do estado burguês, tal como diz Marx:
O Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns. e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época.(I.A, p.98)
Marx, desde cedo, incorpora, criticamente, a concepção hegeliana de Estado e considera como positiva a separação entre “sociedade civil” e “Estado político”, como sendo duas esferas distintas e responsáveis pela alienação política do homem moderno, mas também apresenta críticas fundamentais ao idealismo e ao pensamento liberal, pontuando o fato de limitarem a conceber a democracia e a liberdade apenas ao nível formal, do ponto de vista político e apenas nas instituições políticas, e não na vida real, na qual o que predomina são as relações econômicas, identificadas como sendo a esfera da sociedade civil. O Estado é colocado, desta forma, como mediador nas relações entre os homens e a expressão do conjunto da sociedade, eliminando, aparentemente, as contradições e desigualdades existentes no mundo real, o que possibilita a criação de uma situação ilusória que se consolida como fonte da alienação política e de sua contínua reprodução. Nesse período, seus escritos mais importantes são: Crítica do Estado Hegeliano (1843), A Questão Judaica (1843) e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843-1844).
Em “A Questão Judaica”, Marx, ao criticar Hegel, afirma que o Estado anula a seu modo as diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar que o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem são diferenças não-políticas. Ao pregar que todos são membros do povo, sem atentar para as diferenças reais, os elementos da vida real são reduzidos aos limites do Estado. Isso não permite revelar que o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem a seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, que, por sua natureza especial, não possibilitam acabar com as diferenças reais. O Estado só existe e se expressa como instituição política enquanto expressão destas diferenças e de sua perpetuação.
Mesmo apresentando essas críticas, a apreensão do Estado, como instrumento de classe, como poder político organizado que pressupõe dimensões econômicas articuladas e inter-relacionadas a outras dimensões, ainda não está presente, nesse período, em Marx. Isso ocorre mesmo quando ele apresenta como pressupostos à sua análise a existência de elementos materiais, como, por exemplo, a propriedade e a ocupação, ao lado de elementos espirituais como a cultura e a religião, sem estabelecer, no plano teórico, qualquer hierarquia entre esses diferentes elementos. Assim, o Estado ainda não surge fetichizado e não é apresentado como o poder organizado de uma classe sobre outra(s), mas como uma generalidade em oposição ao conjunto da sociedade.
A superação da marcante e importante influência de Hegel, de abandono do democratismo revolucionário e o início da elaboração das bases da teoria de Marx e Engels sobre o Estado, corresponde ao período compreendido entre 1844 e início de 1850. São dessa época algumas de suas mais importantes obras: Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), Teses sobre Feuerbach (1845), A Miséria da Filosofia (1847), Trabalho Assalariado e Capital (1847), e, em colaboração com Engels, A sagrada família (1844), A ideologia alemã (1845-1846) e O Manifesto do Partido Comunista (1848).
Partindo do pressuposto dos pensadores liberais de que a função do Estado é garantir a propriedade, Marx compreende que, por mais que se tente apresentar o Estado como expressão harmônica e genérica do conjunto da sociedade, ele é, na realidade, o lócus dos antagonismos sociais baseados na contradição entre o interesse geral e o particular, entre o público, o social e a vida privada.
Este fragmento é parte do texto publicado no II Eincontro Internacional de Educação da UFC - 2008.

A Política na ótica de Marx

A Política sobre a ótica de Marx
Prof. Msc. Ricardo George
Abordar a questão da política em Marx é necessariamente abordar uma crítica ao modelo de Estado e sociedade imposto pelo capitalismo, haja vista que nesse modelo produtivo e de organização social o que temos é a plena satisfação dos que estão no topo da pirâmide, em detrimento da massa que produz: os operários. Sendo assim, as mais diversas esferas do estrato social: Justiça, Saúde, Educação, dentre outros, servem aos interesses dessa classe. A política, nesse contexto, não se expressa como promotora dos homens e em favor da sua emancipação, ao contrário, sustenta os interesses de poucos, que através dela ocupam o poder. O que nos leva a crer que cabe uma crítica e uma negação dessa política, que expressa a sociedade capitalista. Contudo, cabe investigar se esta é a posição final de Marx sobre a política, isto é, se sua concepção de política se resume à política da sociedade capitalista, ou se este vislumbra a política para além desse modelo. Contudo, vamos iniciar por analisar a questão da crítica à política no interior de sua obra, a começar pela questão judaica.
Marx chama a atenção para a redução que Bruno Bauer realiza ao criticar as pretensões de emancipação política por parte dos judeus. Tal crítica se efetiva pelo fato de Bauer não ter compreendido claramente que o argumento mais contundente deveria ser contra o Estado burguês, consolidado e representante da burguesia, e opressor do proletariado. Contudo, identifica Marx, Bauer não alcançou essa problemática ao ficar preso à querela da religião, diríamos nós que poderia ser até uma caminho interessante para se iniciar a crítica ao Estado, contudo, nessa perspectiva faz-se necessário avançar, coisa que Bauer não efetivou. Sendo assim, Bauer apenas ansiou a laicização do Estado. Para Marx, não seria suficiente para superar as contradições materiais existentes: fome, miséria, dentre outras. Contudo, analisemos os posicionamentos de Bauer.
Bauer se pergunta pelo sentido da emancipação desejada pelos Judeus, e considera tal desejo egoísta e desprovido de sentido, na medida em que deveria pleitear uma emancipação da humanidade e não apenas do Judaísmo enquanto religião que agrega membros.
“(...) Como poderemos vós libertar-vos? Vós judeus sois egoístas, se pedirdes para vós, como judeus, uma emancipação especial. Como alemães devereis trabalhar pela emancipação política da Alemanha e, como homens, pela emancipação da humanidade”(...) Por que seria então penosa a opressão particular, se aceitam a opressão geral? Por que razão deve o alemão estar interessado na libertação do judeu, se o judeu não se interessa pela libertação do alemão, ” (Marx, 1964.p.35)
A seqüência dos posicionamentos de Bauer sobre a questão judaica se agudizam com a pergunta que o mesmo faz sobre a natureza do judeu e do Estado cristão que o emancipará. Tal indagação visa considerar o extremo de contradição vivido pelo judeu a desejar tal fato, pois, para Bauer, a questão posta esta reduzida ao foco da pergunta que ele põe, ou seja, o judeu precisa enxergar que o problema político por ele colocado está fora de foco, na medida em que não é possível emancipação enquanto houver a curta compreensão religiosa presente. Assim sendo, Bauer propõe a superação do Estado religioso, verdadeiro foco de atraso e antagonismo, pois a mais forte forma de oposição existente nesse contexto é a oposição religiosa. Bauer destaca então que só é possível emancipação quando se realizar a emancipação da religião. Então, o problema central para Bauer recai na direta relação entre Estado e religião.
Marx analisa o argumento de Bauer e encontra no mesmo uma fragilidade, na medida em que considera o centro da problemática sem considerar suas raízes. Em última instância, Bauer acredita na política burguesa da organização capitalista, e, por conseguinte, na sua formulação jurídica enquanto Estado, pois reduz a problemática de análise da política, do Estado, e da emancipação humana apenas no aspecto religioso, não alcançando, assim, o real problema da política nos moldes da democracia burguesa, que se expressa como alto-contemplação na medida em que esta política só satisfaz o interesse da classe dominante, que via de regra ocupa o poder nas esferas institucionais do Estado. Bauer, para ser contundente, precisaria ter considerado o Estado como tal, isto é, como instituição, independente de sua “máscara social”, ou seja, para além de elementos de adorno do Estado como a religião. Não é a religião que define o Estado ou seus interesses, mas o modelo de organização produtivo subjacente a ele. Sendo assim, a crítica de Bauer ficou fora de foco, por não considerar o aspecto político da sociedade capitalista que fornece os elementos substanciais a esse Estado. Nos diz Marx:
“A critica teria ainda de fazer uma terceira pergunta: que espécie de emancipação está em jogo? Que condições se fundam na essência da emancipação que se procura? A critica da própria emancipação política era apenas a crítica final da questão judaica e da sua dissolução na-questão geral da época - Devido ao foto de não formular o problema a este nível, Bauer cai em contradições. (...) Quando Bauer, a respeito dos que se opunham à emancipação judaica, afirma: O seu único erro foi apenas pressupor que o Estado cristão o único e que não tinha de submeter-se à mesma critica que o judaísmo – vemos o engano de Bauer no facto de só submeter à crítica o – Estado cristão – e não o Estado como tal, de não examinar a relação entre emancipação política e emancipação humana e, portanto, de pôr condições que só se explicam pela confusão acrítica da emancipação política e da emancipação humana universal. ” Marx, 1964.p.39-40)
Bauer não alcançou a problemática central segundo Marx, e realizou uma série de confusões em torno da questão, a saber:
I. Tomou o problema da emancipação humana reduzido à emancipação política.
II. Considerou uma crítica religiosa como crítica ao Estado.
III. Reduziu o conceito de Estado a Estado religioso, e, por isso, não considerou suas implicações.
IV. Realizou uma crítica ingênua da Política e do Estado na medida em que passou a defender e acreditar que apenas a secularização dessas instituições cumprisse o papel da emancipação humana.
V. Não considerou o aspecto estrutural do Estado capitalista, que mesmo se afirmando laico mantém em si um modelo religioso de organização, na medida em que o Estado cumpre o papel de mediador entre o homem e sua liberdade, como faz a religião na esfera do reconhecimento metafísico do criador com a criatura.
VI. Tomou como pressuposto a relação entre emancipação política e religião, quando para Marx seria mais coerente esta verificação através da relação entre Emancipação política e Emancipação humana.
Entendemos, pois, que Marx considera insuficiente a análise de Bauer em vista do exposto, além do que o elemento político no Estado capitalista não garante a emancipação humana como conquista dos homens e mulheres socialmente organizados, mas emerge como benefício da gerência do Estado, que garante direitos aos cidadãos de maneira formal, mas não substancial. É verdade que esses direitos existem desde a emergência da Revolução Francesa como direitos fundamentais do homem e do cidadão, tais como: o direito à propriedade, à Educação, à liberdade, à Igualdade. Contudo, esses se expressam apenas na forma da lei (formalmente), mas não alcançam o real existir dos membros da comunidade, isto é, na vida concreta (substancialmente), estes não se manifestam a não ser como o mínimo necessário à perpetuação de uma classe de operários que servem à classe dos produtores, de tal maneira que o Estado político emerge como comunidade ilusória, isto é, como instituição política é incapaz de promover a igualdade social, a justiça e a liberdade.
O que se pode concluir até o presente momento é que a política não representa os ideais de emancipação humana, portanto o Estado político que nasce dessa manifestação política também não representa tais ideais, ao contrário do que pensava Bauer, que punha toda confiança no Estado político em detrimento do Estado religioso como se a simples superação desse Estado religioso pudesse emancipar a humanidade. Bauer não considerou, como antes foi destacado, a insuficiência dessa superação, haja vista que o Estado político continuará com aspectos de Estado religioso, na medida em que todos os aspectos da vida egoísta continuam a existir na sociedade civil. Diz-nos Marx:
“Onde o Estado político atingiu o pleno desenvolvimento, o homem leva, não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla existência – celeste e terrestre. Vive na comunidade política, em cujo seio é considerado como ser comunitário, e na sociedade civil, onde age como simples indivíduo privado. (...) O Estado político, em relação à sociedade civil, é precisamente tão espiritual como o céu em relação à terra. Mantém-se em idêntica oposição à sociedade civil, vence-a da mesma maneira que a religião supera a estreiteza do mundo profano; isto é, tem sempre de reconhece-la de novo, de restabelece-la e de permitir que por ela seja dominado. O homem na sua realidade mais intima, na sociedade civil, é um ser profano. Precisamente aqui, onde aparece a si mesmo e aos outros como individuo real, surge como fenômeno ilusório.” ( Marx, 1964.p.46)
Até aqui buscamos demonstrar a crítica de Marx à política e ao Estado tomando como centro de investigação a Questão Judaica, contudo sabemos que em diversos outros textos, essa problemática retorna no contexto teórico de Marx. Textos como As Glosas Críticas à margem do artigo “O Rei da Prússia e a Reforma social”, A Guerra Civil na França (1817), As Lutas de Classe na França, O 18 de Brumário, O Capital e o Programa de Gotha, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, dentre outros. Embora existam nuances significativas no contexto geral, tratam de uma crítica à Política, ao Estado, e a suas formas de apresentação no interior da sociedade capitalista. Tais textos passaram a significar, no entanto, para um número considerável de estudiosos do pensamento de Marx, uma posição radical de condenação à Política. Nosso texto quer, nesse sentido, ser um provocação reflexiva sobre tal questão, e deixar em aberto uma discussão sobre algo que a tanto vem se pondo como questão já fechada, a saber: Marx é contra toda manifestação política. Seria, portanto, impossível conceber emancipação humana e política. Em outras palavras, conquistada a emancipação humana não seria mais necessário nenhuma forma de política.
No início do segundo tópico, apontamos essa questão como problema a ser enfrentado. Quando nos referimos à problemática da política indagávamos se esse seria o posicionamento final de Marx. Tendo em vista o profícuo trabalho acadêmico já desenvolvido em torno do mesmo, e as exposições que traçamos acima, parece claro a assertiva que confirma o fim da política em uma sociedade emancipada. Contudo, gostaríamos de destacar algumas reflexões em torno da questão. Vejamos: Parece-nos que a crítica à política em Marx é clara e contundente, no entanto essa crítica é historicamente localizada enquanto crítica da política desenvolvida na sociedade capitalista, de modo que ao elaborar uma negação da política, Marx não está negando a ação dos homens enquanto organização, mas enquanto modelo de opressão desenvolvido pelo capitalismo e pela concepção de democracia burguesa. Podemos superar o Estado como organização política, contudo nos parece que Marx entende a política para além desse modelo do capitalismo. É verdade que expressões de primeira grandeza da tradição marxiana interpretaram a questão de forma a expurgar em uma sociedade emancipada a política, apontando a ausência de necessidade da mesma. Assim é, por exemplo, o posicionamento de Lênin a respeito dessa questão, quando expõe as situações históricas da comuna.
“(...) Em lugar de instituições especiais de uma minoria (funcionários civis, chefes do exército permanente), a própria maioria pode desempenhar diretamente as funções do poder político, e, quanto mais o próprio povo assumir essas funções, tanto menos se fará sentir a necessidade desse poder.” (Lenin. 1983.p.18)
Contudo se observarmos com cuidado e atenção a devida citação, acima proposta, entenderemos que o próprio Lênin destaca o fim de um modelo político para a substituição de outro. Nesse sentido, o que deve findar é o modelo classista de Estado que privilegia uma minoria de funcionários pagos para responder às necessidades dos donos dos meios de produção, ao contrário disso, em um modelo emancipado de sociedade, a maioria organizada em comunas assume o poder político. Temos, portanto, um sentido de política enquanto ocupação do espaço público pelo povo, e, verdadeiramente pelo povo, à medida que temos um nivelamento das funções e da distribuição das riquezas. Por conseguinte, o que temos é um modelo político muito próximo ao sentido Grego de fazer política, como cuidado de todos por todos, e não de uma minoria privilegiada que se esconde atrás de status institucionais para garantir privilégios. E diríamos, a partir do melhor sentido de compreensão da política grega, no tocante a todos os cidadãos poderem se apropriar da polis, superando a visão de que apenas alguns são cidadãos.
Marx, segundo Lênin, propõe claramente o fim do Estado burguês e seu modelo político de organização, e não o fim da política como atividade constituída do existir social dos homens, de modo que propõe um novo modelo de organização que seria a princípio um governo da classe operária, como nova forma política de organização.
“ A multiplicidade de interpretações a que a comuna deu lugar, a multiplicidade de interesses que nela encontraram expressão provam que foi uma forma política inteiramente expansiva quando as formas anteriores eram expressamente repressivas. Eis o verdadeiro segredo: era ela, acima de tudo, um governo da classe operária, o resultado da luta entre a classe que produz e a classe que açambarca o produto desta, a forma política, enfim encontrada, sob a qual era possível realizar-se a emancipação do trabalho[e do homem] grifo nosso.” (Lenin. 1983. p.23)
Queremos, com isso, ter oportunizado a provocação a respeito dessa leitura e tomamos Lênin para pautar-nos também pela tradição marxiana. Contudo, é diretamente no texto de Marx, deixando o autor falar por ele mesmo, que buscamos construir essa argumentação . Entendemos que Marx tem a política burguesa da sociedade capitalista como uma erva daninha a perpetuar os donos dos modos de produção no poder. Assim, toda pretensa emancipação até hoje realizada não foi capaz de introduzir de forma contundente a humanidade nesse processo, haja vista que os pretensos libertadores políticos, diz-nos Marx, reduzem a cidadania a uma comunidade política. Neste contexto, o citoyen, ou seja, o homem verdadeiramente autêntico, surge como servo do bourgeois, ou seja, o homem da sociedade cível, isolado, atomizado, e imerso no seu egoísmo. Portanto, é ilusório qualquer emancipação que busque garantir direitos, mas não supere a estrutura lógica do capitalismo. Consoante Marx:
“ A Emancipação política é ao mesmo tempo a dissolução da antiga sociedade, sobre o qual assentam o Estado e o poder soberano estranhos ao povo. A revolução política é a revolução da sociedade civil. (Marx, 1964.p.60)
Por conseguinte, parece-nos que essa linha de pensamento não recai sobre o sentido da política em Marx, haja vista que o pensador em questão apresenta posicionamentos em favor de uma contínua organização dos homens em prol da emancipação humana. Para ele, toda emancipação traz no seu bojo uma reestruturação das relações e do mundo vivido pelos homens. Assim sendo, só é possível emancipação com resultados substanciais para a humanidade como segurança, justiça, moradia, educação, e direitos constituídos no existir das pessoas. Por isso, para Marx o sentido de emancipação liga-se ao de um sentido de política, isto é, do homem manifestado no espectro do convívio social, como ser genérico, constituído de significado, e materialmente emancipado. Assim, nesse contexto passará a conviver plena e sucessivamente como homem organizado através de uma força social instaurada como força política. O que nos leva a entender que Marx concebe uma política para uma sociedade verdadeiramente emancipada. Em suas palavras:
“ A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato, quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico, e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política” ( Marx, 1964.p.63)
A presente citação nos remete a uma compreensão outra do sentido de política em Marx usualmente divulgado, levando-nos a considerar, por ela e por outras passagens do texto marxiano, o entendimento de que Marx condena sim o Estado e propõe sua superação, contudo a política não é o Estado, e se há uma política a ser superada sem sombra de dúvidas é a política do democratismo burguês que não emancipa o homem em seu significado de existência concreta ao contrário, o toma como portador de direitos universalmente postos sem atingir sua vida e necessidades concretas.
Assim, podemos concluir, pelo menos a nível desta provocação, que quando Marx persegue em toda sua trajetória de análise da sociedade capitalista e da condição do homem nesta, o entendimento de política faz-se a partir da concepção de uma emancipação do humano e do social em direta oposição à emancipação política, destacando, inclusive, o absurdo de emancipação social com alma política. Isto se dá por que a emancipação política carece de efetividade concreta de direitos, ficando sempre numa universalização abstrata, que subsiste graças à oposição entre a vida genérica do homem e sua vida individual. Assim sendo, ao contrário de muitos, Marx não nega a política, mas a entende como mecanismo da revolução humano-social, na promoção de uma verdadeira emancipação humana que supera o Estado e suas contradições, e coloca o homem no centro da construção da vida pública, como ocorreu na rápida experiência da comuna.
Referência bibliográfica
LÊNIN. V.I. O Estado e a Revolução. Editora Hucitec. São Paulo, 1983.
MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1980.
________. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
________. A guerra civil na França. São Paulo: Global, 1986a.
________. As lutas de classes na França (1848-1850). São Paulo:Global, 1986b.T & M
________. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. [Trad- Artur Morão]. Edições 70. Lisboa. Portugal.1964.
Fagmento do Texto, Submetido a revista Labor UFC.

Violência Totalitaria

A violência totalitária – O braço do terror
Prof.Msc. Ricardo George
A descrição abaixo mostra todo o horror vivido pelos judeus nos campos de concentração, os quais trouxeram à tona toda a capacidade de destruição sistemática do regime totalitário, tanto quanto apresentaram seu principal método de atuação, a violência:
Nas fábricas da morte [...]. Todos eles morreram juntos, os jovens e velhos, os fracos e fortes, os doentes e os saudáveis; não como povo, não como homens e mulheres, crianças e adultos, meninos e meninas, não como bons e maus, belos e feios, mas reduzidos ao denominador comum do mais baixo nível da vida orgânica em si mesma, mergulhados no abismo mais escuro e profundo da igualdade primitiva, como gado, como matéria, como coisa sem corpo nem alma, sem nem mesmo uma fisionomia sobre a qual a morte pudesse imprimir seu selo. É nessa igualdade monstruosa, sem fraternidade ou humanidade [...], que nós vemos, como que refletida, a imagem do inferno. A maldade grotesca daqueles que estabelecem tal igualdade está para além da capacidade de compreensão humana. Mas igualmente grotesca e para além do alcance da justiça humana está a inocência daqueles que morreram nesta ingenuidade. A câmara de gás foi mais do que qualquer um poderia ter merecido, e, frente a ela, o pior criminoso era tão inocente quanto um recém-nascido (EU, p. 198) .
O extermínio silencioso produzido pelas fábricas da morte reduz o significado da existência humana a um nada, em que ser ou não ser não tem significado. Para a crueldade nazista, a descartabilidade do outro era algo certo e necessário de tal forma que o extermínio em massa não reflete sobre o significado da existência do outro e, atropelando todos os princípios, cria uma fábrica de cadáveres, para pôr em frente seu objetivo de domínio total, este que é concebido como meta fundamental, tão fundamental que a vida humana passa a ser secundária em nome do objetivo a ser alcançado. Nessa perspectiva, a violência totalitária atua resguardada pelo Estado, ou seja, o Estado aparece aí como fachada, que possibilita ao monstro liberar seus tentáculos. Usando sua política secreta e agindo sob suas próprias insígnia e vontade, “este [o líder] decide sobre quais categorias sociais incidirão os conceitos de inimigo objetivo ou de sociedade indesejável, tipologias que designam aqueles cuja existência implica discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser exterminados independentemente do que pensem” (Cf. DUARTE, 2000, p. 65). Esse proceder nos leva à compreensão de como o sistema totalitário é capaz de destruir o “humano construído nos indivíduos” , a tal ponto de vítima e carrasco serem atingidos, pois, na medida em que o campo de concentração anula a liberdade de alguns e produz uma matança sistemática de outros, não apenas as vítimas são desumanizadas, mas executores perdem também o sentido da dignidade humana, fato esse que nos revela a forte característica de novidade do totalitarismo, tanto quanto nos esclarece o seu poder de destruição. Nesse sentido, os campos de concentração se apresentam como a principal instituição dos regimes totalitários, não apenas porque eles condensam e potencializam todos os absurdos implementados na textura do social, por essa forma de dominação sem precedentes, mas, também, porque justamente aí se manifesta o objetivo crucial do totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos.
A violência produzida nos campos de concentração ganhou dimensões inimagináveis. É possível afirmar que até os mais competentes roteiristas de filmes de guerra ou literatos do gênero não tenham, até então, colocado em suas obras tamanho requinte de crueldade e horror como fez o totalitarismo nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Essa violência manifesta, sobretudo um novo desafio para a compreensão da política, na medida em que as categorias da modernidade se mostram inadequadas ou insuficientes para dar conta de tamanha ruptura que se apresenta na história da humanidade. O terror entra no cenário político para fincar marcas indeléveis na história dos homens, mas, sobretudo, para provocar um desafio de compreensão, respostas e ressignificação do agir humano, ainda que essa não fosse sua intenção, mas veio à tona em vista de tamanha violência aplicada.
A violência totalitária é apolítica, na medida em que não permite ao outro o direito de manifestar-se. Até as antigas tiranias eram capazes de se encantar com o discurso contrário as suas práticas e até aderir a posições daqueles que em algum momento se apresentaram como inimigo político. No totalitarismo, tal fato é inviável já que o outro não tem direito a compor o tecido social, sendo enviado a confinamentos que destroem sua humanidade ou são diretamente exterminados em câmaras de gás ou com outros recursos, contanto que sejam silenciados. O lugar que ocupa o silêncio no modo de agir do totalitarismo tem significado ímpar, tendo em vista que a capacidade do discurso é sempre uma ameaça. O silêncio ganha importância, o mesmo só deve ser quebrado para exaltar os objetivos do movimento totalitário, o líder e seus símbolos. Portanto, o discurso no totalitarismo tanto é mudo, na medida em que é controlado e direcionado, quanto carente de significado e de poder de denúncia. O único discurso que sobrevive é o do regime totalitário. Fora esse, todos os outros ou se enquadram ou experimentam um último diálogo nos campos de concentração ou câmaras de gás.
Os campos de concentração trouxeram como novidade uma total falta de finalidade, isto é, apresentavam um caráter despropositado em seu agir, “tinham que se financiar a si mesmos e eram praticamente destituídos de qualquer produtividade econômica ou de qualquer finalidade política clara e imediata. Por certo, criminosos e opositores ao regime também foram neles encarcerados, mas a verdadeira natureza dos campos não pode ser compreendida recorrendo-se a esse fato, já que eles só se tornaram abundantes, tanto na Alemanha quanto na União soviética, uma vez sufocada toda oposição. Do mesmo modo, os seus internos, em ambos os países, foram várias vezes obrigados a cumprir trabalhos forçados em regime de escravidão, o que ainda poderia ser humanamente compreensível, pois apresentava precedente histórico. Entretanto, a própria falta de planejamento e de organização dessas tarefas forçadas, somada ao fato de que o trabalho jamais constituiu a regra geral no sistema ‘concentracionário’, denuncia a verdadeira destinação dos campos de concentração: a de não servirem para coisa alguma, senão para destruição da liberdade” (Cf. DUARTE, 2000, p. 68).
A negação e anulação da liberdade humana promovida pelos campos de concentração criaram um clima de destruição do homem, isto é, daquilo que faz o homem ser homem. Artifícios como a liberdade, a pluralidade e a existência de um espaço de convivência política garantem humanidade, enquanto a ausência desses nos leva em direção contrária , mutilando a dignidade humana ou até destruindo-a por inteira.
A violência dos campos de concentração traz no seu interior tamanha força destrutiva, que é capaz de aniquilar o último resíduo humano presente no homem, transformando-o em mero “feixe de reações” (Cf. OT, p. 492) que, por sua vez, pode ser aniquilado sem oferecer qualquer resistência. Tudo isso torna claro que a violência encontra morada nos campos de concentração. Sendo ela “senhora-mor” dessa casa de horrores, conduz forçadamente cada um de seus habitantes, que aí se encontram, a uma certeza: sua dignidade como pessoa está marcada para sempre , pelo menos a dos que sobrevivem.
Cabe agora, exposto os malefícios da violência do terror que nega os direitos humanos, discutir como apareceu no contexto contemporâneo à questão específica da bioética, e como ocorreu seu desenvolvimento histórico e sua ligação com as questões de respeito a vida.
Parte integrante da dissertação de Mestrado Defendida no Progama de Pós-Graduação da UFC - 2006.